sexta-feira, dezembro 29, 2006

Mondo de Saikawa Roshi

Ontem, ele me propôs o seguinte mondo:

"Meu pai é o Universo e minha mãe o Tempo".

Mais tarde, numa segunda colocação disse:

Ainda que me desloque, nunca saí do lugar.
Se é assim, indaguei, o que acontece seu eu visitar Paris.
- Nesse caso, não fui eu que visitei Paris, mas Paris veio até mim.
E completou, de maneira enfática: "Se não for assim, nada entendeu a respeito do zazen".

domingo, dezembro 24, 2006

Shosan – Retiro da Iluminação

– Respeitável Mestre, uma dúvida me atormenta:
fazemos o voto de não matar nenhum ser vivo.
Por favor, esclareça-me, então, como devo proceder em relação às pulgas de meu cão.

– A vida não é nascida. Assim, não pode ser extinta.

sábado, dezembro 23, 2006

Céu azul e mata verde

Ainda que insistamos que a mata seja verde, alguns insistem em vê-la de outra cor. O mesmo acontece com o céu, azul, numa tarde isenta de nuvens e tempestades. Podemos dizer que um círculo é redondo e um quadrado é quadrado. Ou ainda que as águas das montanhas correm em direção ao mar. Assim, as coisas são aquilo que são independente da vontade de forças superiores e externas. A passos lentos uma tartaruga caminha, os corvos voam e as serpentes rastejam. Ao retornar da China, o jovem Dogen foi consultado a respeito do entendimento. Perguntaram-lhe, o que tinha aprendido no continente. "Sei que os olhos ficam na horizontal e o nariz na vertical, que o sol nasce no oriente e se põe a ocidente, que após as chuvas as montanhas ficam mas próximas..." Nada mais do que isso era verdade, apenas a verdade, sem depender de agentes estranhos a esta própria realidade.
Isso requer entendimento e muita pouca fé. Aquilo que conduz à salvação é a própria Iluminação, que liberta a mente e destrói qualquer resquício da existência do Eu. Dito de outra forma, a Iluminação é o estado natural dos seres vivos que debatem-se mergulhados num poço escuro da delusão. Delusão esta construída a cada momento que o homem pensa a respeito de sí próprio, de maneira racional ou não. Toda vez que pensa, deixa de ser o homem natural para se tornar numa idéia totalmente conceitual. Não pensar, signfica também mante-se alerta a cada momento de nossas vidas. Pois cada momento é o momento novo, não determinado ou pré-determinado. Assim vivemos com o coração em atitude de agradecimento o instante, que não foi pensado, nas circunstâncias apresentadas no momento. Sem fazer avaliações, nem comparações.

Carta a um amigo 1

A pergunta que os neófitos querem resolver é a respeito do sentido da vida e o mundo que o circunda. Teria sido assim também quando o jovem príncipe Sidhartha, que após vencer as muralhas que o isolava do mundo, constatou a miséria que cercava a existência humana. Percebeu que a dor estava presente, gerando desta forma o sofrimento, e que era necessário conhecer as razões disso. Não podemos negar que ele realmente exista em circunstâncias específicas. Por isso, a primeira nobre verdade é a existência da dor. Ela pode ser criada pela nossa mente quando a nossa experiência depara-se com algumas situação. Pode ser de perda. Para uma criança, se alguma outra tomar-lhe o brinquedo pela primeira vez sentirá as dores do sofrimento. A mesma criança, mais tarde, se não ter os seus desejos satisfeitos, como um lanche da rede Mac Donalds também conhecerá o mesmo sentimento. Na adolescência, o jovem desejará ter roupas de grife, celular, tênis importado, carro, mochila, e uma mesada que nunca será suficiente. Na falta destes, haverá a dor e conseqüentemente o sofrimento. E na idade adulta quem não conseguir ingressar numa universidade de primeira linha, terá que se contentar com uma outra, de categoria inferior. Ao tentar vencer as etapas do vestibular e caso seja frustrado, vem a dor e novamente o sofrimento. Depois, não conseguir um bom emprego também causa dor. Por inúmeras vezes, tenta-se ingressar na carreira pública. Enquanto não se entrar, tem dor e sofrimento. Uma vez lá dentro, a dor surge toda vez que sua ânsia de galgar postos mais compensatórios não se realiza. A dor surge, inclusive, quando o colega conquista o mesmo que ele deseja. É a dor do ciúme, da inveja. Sente-se rebaixado e diz:"eu merecia mais do que ele". E em seguida, mais dor. Assim perdura pelo resto da vida...
Esta dor é gerada pelo apego a idéias preconcebidas e a coisas. Trata-se de uma mente condicionada pelas exigências sociais, condizentes com o sistema econômico em que vivemos. Penso que sempre o sofrimento estará nos espreitando, como uma sombra sinistra onde quer que vamos. Não obstante, se constato que a dor existe, tenho que descobrir a sua origem. Colocamos acima também esta segunda nobre verdade: a origem da dor. A não satisfação de nossos desejos é a origem da dor. Podem ser múltiplos os motivos para isso. Não acredito que exista alguém totalmente desapegada, que não é o caso da prática budista. Acabar totalmente com os nossos apegos seria temeroso. Ao meu entender, o segundo voto do Bodhisattva diz: os desejos são insaciáveis, faço o voto de extinguí-los, é uma forma de comprometermo-nos com aquilo que realmente almejamos. Entendo que o desejo ou paixões sejam manifestações emocionais momentâneos, sem muita consistência. Uma vez que um adulto adquire um carro novo, aquele desejo foi satisfeito mas em sua mente outros estarão se formando. Quando jovem estudante de História na PUCSP desejava comprar todos os livros citados e sugeridos. Invejava os professores que tinham uma elevada bagagem cultural, uma erudição sem igual. Queria ser como eles e para isso, precisava dos livros. Quanto mais, mais queria e formei um acervo de mais de cem livros de história. Ainda assim, queria adquirir. O sofrimento era grande. Nesta época o meu sofrimento tinha por origem a vaidade intelectual não satisfeita.
Reconhecer que algumas necessidades não passam de paixões é o ingresso no Portal da Iluminação. E assim, podemos dar cabo nesta forma de sofrimento.
Existe uma clara diferença entre condições necessárias para a existência e desejos. Entre as condições falamos da educação, da saúde, moradia, cultura. Resumindo estes, três são as necessidades mínimas para a existência: alimento, roupas e moradia. Não se tratam estes de desejos. Para um médico ter um telefone celular não é desejo, mas instrumento de trabalho. No meu caso, descartei a muito tempo esta comodidade. Alguns podem achar que ter um computador seja um desejo, enquanto outros uma necessidade de trabalho. Para mim o computador é uma necessidade de expressão.
Entendendo desta maneira, o desejo é a causa maior de nossos sofrimentos. Não seria o contrário. Mas vivemos num mundo de desejos, constamente veiculados pela imprensa, pela propaganda, pelas relações sociais. Ser escravo dos desejos é pior do que ter desejos.
Não que seja um placebo para isso, mas o zazen é uma maneira de amenizar o aparecimento dos fantasmas de nossa mente. Posso dizer, dos desejos. No zazen tenho a capacidade de perceber melhor o que seja a verdade e o desejo. Por isso fazemos zazen. Como uma poça de lama em noite de lua cheia de outono, se o espelho d'água não for perturbada, reflete-se inteiramente o universo. Reflete a lua, os postes, os carros, a bota das pessoas etc. Assim é a nossa mente: reflete apenas. Uma vez que a água da lama é incomodada pela presença de uma pisada, a água se turva e trepida sem que o reflexo realmente possa refletir o mundo real. A mente em estado de zazen é como a água calma de uma poca de lama.

sexta-feira, dezembro 22, 2006

Shosan - Sesshin da Iluminação

Assim pertuntei ao Superior Dosho Saikawa ao final do Sesshin da Iluminação.

Honorável Dedo do Dharma, mas por quê? Assim ouvi que todos os seres vivos de todo o Universo possuem a natureza de Buda. Os peixes nadam, as aves voam e o sol brilha. Entretanto, soménte o ser humano logra atingir a Iluminação.

- É porque o ser humano é deludido.


Obs. convidos os outros que participaram do shosan a colocarem as suas perguntas/respostas.

Distribuindo branquinha

Surgiu a idéia de maneira inesperada, contrário a todos os paradigmas até então desenvolvidos nas atividades sociais. Neste final de ano, poderíamos exercitar o nosso entendimento de uma forma especial. Claro, alguns entenderam a mensagem mas não ousaram colocá-la em prática. Pois bem, o que queríamos era distribuir pelas ruas da Paulicéia algumas garrafas de cachaça para os desiludidos, catadores de papel, de lixo ou simplesmente ociosos da vida. Levando em consideração de que aquilo que bom para mim talvez seja diferente para o outro ou que a compaixão é a experiência de sintonizar o coração alheio, num universo fenomênico em que existe a dualidade (do eu e do outro) o que na verdade do dharma tal dualidade é criação unicamente de minha ignorância e egoísmo, procuramos vivenciar nós mesmos sendo o outro. Deixe-me colocar de um jeito mais simplês: sem discriminação, aquilo que agradava ao outro poderia ser priorizado numa ação que ultrapassasse as idéias, solidificadas em ações concretas.
A respeito deste outro, posso tecer considerações objetivas e devidamente experimentadas através da observação. Tempos passados, junto com um companheiro de prática budista resolvemos participar de um trabalho social, que reunia militantes da Igreja Católica. Era com os moradores de rua. Estes moradores buscavam alimento, lazer e banho nas casas mantidas por aquela entidade religiosa e conveniadas a prefeitura. Mas o que nos interessa aconteceu no depoimento de uma voluntária ligada a um grupo que cuidadava dos moradores da região central, nas proximidades da Praça da Sé. Disse ela: "Nosso trabalho é frustrante e muitas vezes sinto que nosso trabalho é em vão". Com voz lenta e angustiada contou o seu drama. Conforme nos relatou, ela retirou da rua um homem a fim de reintegrá-lo na sociedade, inclusive dando-lhe roupas novas, banho, alimento e corte de cabelo e barba. Entretanto, dois dias se passaram e ela novamente o viu nas ruas, usando os andrajos e alimentando-se de uma garrafa de cachaça. Ao ouvir este relato, no meu depoimento com energia a critiquei. Para mim, ela não tinha direito de planejar o futuro de ninguém, nem o de dizer aquilo que era melhor para o outro, ignorando totalmente a história de vida daquele. Cheguei a pensar: " que atitude egoísta são os dos que realizam trabalhos sociais visando apenas seu próprio prazer?" Vem a calhar o que ouvi um dia o monge amigo me aconselhar. "Com os injeitados temos apenas que aprender e não ensinar-lhes, pois a nossa interferência incomoda-os, assim devemos pedir desculpas antes de dirigir-lhe a palavra". Nesse caso, a nossa insolência de detentores da verdade nos torna profundamente egoístas.
Não apenas este caso verifiquei. Num outro, no caminho de casa, à noite quando o frio do inverno era assustadoramente aterrador. Certa mulher bem intensionada, uma temente de deus, com a capa negra do livro sagrado que levava nas mãos, tiritava de frio enquanto seus lábios pronunciavam um sermão dígno dos pastores mais fervorosos. Do outro lado, um mendigo tinha sido acordado de seus sonhos e experimentado uma situação bizarra. Seus olhos ofuscados por ter sido abruptamente acordado, lacrimejavam. Destarte, aquela mulher pronunciava a beleza da graça divina e o valor do arrependimento. Mas em nenhum momento, parece-me, o sentimento daquele homem fora levado em consideração. Naquele momento não era de sermão que ele necessitava - o mais maravilhoso que fosse - mas de ações concretas. Pensei, ele necessita de um copo de café forte e quente, de um cobertor, de um sono que não fosse incomodado.
Não que os exemplos citados servissem de justificativas pela ação concretizada nesta noite de 21 de dezembro de 2006. Apenas a realizamos, eu e o amigo Seigen.
Levávamos meia dúzia de garrafas de cachaça e dois pacotes de biscoitos. Saímos da Liberdade e fomos para a Bela Vista. Na rua Rui Barbosa, nas sombras vislumbramos dois homens e uma mulher em torno de sacos de lixos. Eram muitos os sacos de restos de comida de um restaurante próximo. Chegamos perto, sem levantar suspeitas e ofereci o saco de biscoito. Ele agradeceu. "Amigo, você gosta de branquinha", consultou Seigen. A resposta foi afirmativa. Talvez ele nem acreditasse, mas ganhou sua garrafa. Estupefato, escancarou um sorriso de dentes cariados e feliz declarou "puxa, fiz a noite!". Na mesma Rui Barbosa mais dois mendigos, que numa assembléia, talvez confabulassem suas agruras e amenidades, ganharam as suas porções. Chegamos finalmente na Praça Roosevelt, mas o único mendigo que encontramos, ao ser consultado disse que não apreciava o bebida. Deixamos para lá e continuamos a via sacra. Na Praça da República, nada de mendigos. De um lado para o outro perambulavam os hippies saudosistas vendendo suas quinquilharias. Mas quando entramos na rua Barão de Itapetininga, quase 22hs, as lojas cerravam suas portas. Chegamos a tempo do catador de papelão recolher o que restava no chão. Ao receber a sua garrafa achou ânimo para ironizar "bem, penso que é natal". Um mendigo solitário que sentava-se aos fundos da escadaria do Teatro Municipal ganhou mais uma garrafa e um outro, na esquina do Viaduto do Chá, também foi premiado. Assim terminamos a nossa distribuição de garrafas de cachaça.
Esta foi a experiência mais calorosa realizada neste ano. Tinha planejado anteriormente, que além do Seigen sensibilizamos outros companheiros. Mas achei no Seigen aquele que levou mais a sério o propósito. Como ele viajava naquela noite para o Rio, por pouco a distribuição seria frustrada. Agradeço a ele, pois quando lembrei-o do nosso plano ele próprio fez questão de realizá-lo antes da sua partida.

terça-feira, dezembro 19, 2006

Sincronia

Quinto dia de Sesshin. O dia estava escuro, o céu cinza de nuvens apressadas. Estávamos imóveis no zendô desde as seis horas da manhã. Ao som da minha respiração somávasse o som das máquinas na rua São Joaquim, o alarido das crianças que brincavam na calçada ao lado do templo, um Bem-te-vi e alguns Pardais. A imobilidade na sala de meditação foi então quebrada de súbito, pelo inesperado tocar do pequeno "sino" utilizado pelo Inô, mas agora nas mãos do professor Saikawa. Só ele estava de pé, fez três prostrações em frente à imagem do Buda Monju e começou a entoar sozinho um sutra. Neste momento, as nuvens silenciosamente móveis sobre nossas cabeças deixaram uma brecha no céu que iluminou todo a sala. Logo depois Saikawa Roshi falou-nos sobre delusão.

Nem dentro, nem fora

No Shodoka, há uma estrofe que diz:

"Temos de viver muitas vezes
e muitas vezes morrer.
Vida e morte se sucedem
continuamente na eternidade"

Zazen é igual à vida.
Durante o sesshin, morremos e nascemos inúmeras vezes, ao longo dos sete dias: a cada madrugada sonolenta, a cada impulso de abandonar o zafu, a cada pensamento prazeroso que nos arrasta para longe da sala de meditação.
Morremos de dor nas pernas, morremos de raiva quando somos corrigidos, morremos de sono, às vezes.
Mas, a cada morte de nosso ego, simultaneamente há um renascimento venturoso na morada divina do aqui-e-agora.
Então já não há as minhas pernas, o meu sono, a dor nas minhas costas, mas o universo todo que renasce no pássaro pousado na janela do templo, no sorriso encorajador do monge ao seu lado, no perfume do arroz que vem das tigelas, na vida que se agita no sobe e desce da rua São Joaquim.
Realizar o sesshin é, antes de tudo, abandonar essa vida de ilusões e renascer nas três jóias, no Buda, no Dharma e na Sangha: Buda é a mente, o Dharma é o próprio Buda, a Sangha é o Dharma presente.

Com respeito, agradeço à Sangha.
Que esse renascimento venturoso se espalhe por todas as direções, em benefício de todos os seres.

Zazen é igual à vida.


sábado, dezembro 16, 2006

Após o vendaval

Mais do que o esperado, muitos são os sobreviventes, poucos os mortos. Durante seis dias entre 28 a 32 pessoas submeteram-se a um treinamento do corpo e da mente, repetindo o mesmo processo que culminou na Iluminação do príncipe Sidhartha. Estamos na Rua São Joaquim, uma quadra e meia a partir da estação de metrô homônimo. Ainda está escuro quando os primeiros começam a chegar. Possivelmente o primeiro deles seja o monge inô, que cruzou os bairros da Lapa, Barra Funda, Santa Cecília, Vila Buarque, Consolação, Bela Vista até chegar na Liberdade. Ele vem montando a sua bicicleta novinha, que resolveu usar no último dia do Sesshin da Iluminação. Templo Busshinji se avista com seu portal, assim que descemos a São Joaquim. Temos alunos de várias origens: Florianópolis, Curitiba, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraíba e um de Barcelona, Espanha. Os sotaques são muitos, que se ouvem nos intervalos das sessões de zazen. Bem, está proibido conversar. Desta vez, procuramos relaxar um pouco.
Assim que se penetra na Sala de Buda, que usamos como dojo durante este sesshin, duas fileiras de tatamis estendem-se pelo espaço em forma de L. No encontro destas destas fileiras está instalado o altar do Bodhisattva Manjusli. Perto dele, o lugar do roshi. De olhar calmo e voz branda, mergulhado em sua concentração mantém os olhos fechados. Mas não dorme. Com os olhos fechados ele sabe o que acontece em cada ponto da sala, mesmo às suas costas. Cada invasão naquele ambiente sagrado, de algum aluno atrasado ele reconhece. O chão de madeira estrala ao peso dos corpos e alguém menos avisado ainda que procure disfarçar denuncia a sua presença.
Pela rua São Joaquim às vezes o barulho dos carros é imenso. Mas neste sesshin, ninguém reclamou. Aliás, só tivemos um abandono no primeiro dia: "este local é muito barulhento e poluído", justificou a atitude. A respeito pensei nas horas vagas, será aquela rua realmente barulhenta. Sentado em zazen, quando me dava conta do barulho, então o barulho surgia. Nos momentos das refeições, tinha a impressão que havia barulho, mas a atenção deveria se dirigir a algo mais importante: o movimento das mãos ao manusear o hashi, a colher, o setsu, as tijelas (haviam três). Para cada utensilho um tipo de alimento: o arroz, a sopa, a verdura, a converva, a sobremesa. Ninguém se atrasava, ninguém se adiantava. Todos começavam juntos e juntos terminavam. Senti uma saudade do sodo do Mosteiro Zuioji, onde, pela primeira vez, exercitei minhas habilidades manuais e atenção permanente. Por isso, nenhum barulho, caso existisse não incomodaria. Uma vez um mestre disse que o barulho desaparece quando ele vem e se retira normalmente. Entendi que tínhamos que aceitar o barulho em nosso entendimento, sem relutância, que ele desapareceria em seguida sem deixar marcas.
Durante o treinamento talvez o momento mais difícil seja o do relacimento humano. Em sua miséria, o ser humano pensa e problematiza a vida: eu e o outro, a vaidade, a raiva, a intolerância, o orgulho, a soberba e outros adjetivos piores do que os mencionados. No sesshin estas ervas daninhas da mente surgem sem moderação para que a pessoa se dê conta de sua delusão. Mas por outro lado, os mansos de coração sofrem menos as dores da mente e do corpo. Envergando seus mantos negros nada os atingem, pois mantém-se em permanente atenção e sentam-se em zazen sem hesitação. Havia monges jovens de menos de trinta anos, outros mais velhos, depois dos setenta. Sentados, nada os distinguia.
Ao final do sesshin, alguma coisa aqueles jovens e velhos monges e leigos, enfim praticantes do dharma, tinham aprendido. Não posso dizer dos outros, mas cada vez a minha convicção de que o tempo é fluido o suficiente para não ser vivido integralmente se torna patente. Assim, se a atenção não estiver presente a cada instante de nossa vida perderemos o trem da história. Penso que poderemos priorizar mais o tempo da atenção e menos o tempo inútil das amenidades. Para isso, não existe lugar para egoísmos e outros venenos provocados pela ignorância.
Por tudo, reverenciemos a Buda.

Namo Tassa Bhagavato Arahato Samma Sambuddhassa

Homenageio a Ele, ao Afortunado, ao Consumado, ao Perfeitamente Iluminado.

segunda-feira, dezembro 11, 2006

Templo do barulho

Sabedor das dificuldades enfrentadas pelos os que submetem-se a uma prática intensiva de destruição de ego, durante os sete dias de retiro - a que chamamos sesshin - o primeiro dia acusou uma baixa. Tão rápido quanto as poucas horas, depois de seu início. Estamos em pleno Sesshin da Iluminação no Templo Busshinji, aquele da rua São Joaquim. Aproximadamente dois milênios e meio o príncipe Sidhartha também enfrentou situação semelhante. Debaixo da árvore de Bodhi, enfrentou um a um os obstáculos produzidos pela própria mente. E um a um foi vencendo as filhas sensuais de Mara, os demônios de língua de fogo, os animais fantásticos, os fantasmas e toda espécie de praga. O próprio Mara surgiu em sua frente, com a cara do outro, com a cara do próprio Sidhartha. Mas em nenhum momento Sidhartha ofereceu resistência, nem os alimentou em sua fome de ilusão. Deixou que viesse, deixou que se fossem. Nada daquilo tinha consistência: totalmente vazios.
Da mesma forma que Sidhartha, no mês em que se comemora a Iluminação, os alunos de zen do mundo todo, seguindo as instruções de seus mestres realizam caminho semelhante. Nada é fácil, bem contrário. As pernas doem após 40 minutos em lótus, ou semi-lótus ou simplesmente sentado com as pernas cruzadas. Mais 10 minutos de meditação andando (kinnhin) para relaxar, sem perder a concentração. Mais 10 minutos para usar o banheiro ou tomar água, e inicia-se de novo um novo ciclo de zazen. Tudo igualzinho como era antes. Isso se repete por quase oito horas. E na mesma posição sentada, os alunos recebem a ração da manhã e mais tarde o almoço. Daquela forma participam das cerimônias da manhã (Choka), do antes do almoço (Nichu Fugin) e da tarde (Banka). Quando é a hora do samu (limpeza), de menos de 30 minutos, pode ser pensado como o momento de relaxamento. Nada mais do que isso. Não se tem tempo para conversar, pois conversar é expressamente probido. É proibido fazer corpo mole na hora do samu: descansar enquanto outros trabalham ou fingir que trabalha enquanto outros fazem o contrário. A quem podemos enganar? A sí próprio, somente a si!
Nesta baixa, algum pensamento ficou. Disse a pessoa que abandonou a prática, antes mesmo dela começar, que o local em que localizava-se o templo era muito barulhento. Bem, até então eu próprio não tinha percebido isso. Barulho? Claro, havia. Mas não sabia como o barulho perturbava. Na rua São Joaquim o trânsito de mão única flui em direção à Avenida Liberdade. Por isso, algumas vezes os carros disparam suas buzinas. Não apenas isso, os pneus rangem, os escapamentos estrondam. Procurei amenizar e rebati: "o barulho pode diminuir em determinados horários". Entretanto, a resposta foi rápida: "barulho e poluição, por isso não quero mais participar deste retiro". Não insisti mais e aceitei seus motivos para a desistência.
Foi por causa do barulho que as pessoas não meditam? Fiquei imensamente desapontado. Poderia ouvir outras razões como "o tempo de meditação é muito longo" ou "não estou preparado para um treinamento tão rigoroso". Seria mais sensato. Não, não era o caso. O caso era o barulho. Um barulho que tinha se transformado em Mara. Ouvi falar de pessoas que procuram o silêncio das montanhas, seu ar puro, a paisamente bela, para meditar. É válido, não nego. Mas me parece algo egoísta. Meditar nas montanhas para eu estar bem. Alguns querem ouvir o canto dos passarinhos ou uma melodia agradável.
Quando estou preocupado com o barulho de fora do templo, do qual me encontro dentro, crio a dualidade do dentro e fora. Será que existe o dentro e o fora? Somente na mente dos condicionados a tal idéia. Apesar do barulho da Rua São Joaquim, nunca me preocupei com ele. Posso dizer que o barulho e eu sempre fomos um, sem eu saber. Mas agora que alguém disse que o barulho perturbava, me despertou a ilusão da existência do barulho e da existência de um eu que o ouve. Felizmente como o zazen tornou-se meu alimento, meu oxigênio, esqueço-me do barulho, sem que ele realmente me perturbe.
A lição que ficou é de que um barulho apenas pode ser tão terrível como o pior dos pesadelos. Em proporção igual, quanto mais ele me perturba, maior é o meu ego. Infelizmente vivemos num mundo com muito barulho, ar poluído e uma infinidade de outros obstáculos. Assim, se o barulho for suficientemente significativo para impedir a prática de um estudante do budismo, o que será de todas as outras ilusões como vaidade, raiva, intolerância, covardia, egoísmo e ignorância. Isso significa que antes de iniciar a corrida desisti de correr. Antes de responsabilizar o outro - o barulho - quem sabe, deveríamos assumir a nossa incapacidade de lidar com o mundo à nossa volta. Posto de outra forma, o mundo que nos cerca e nós próprios somos a mesma coisa. Percebi isso em minha própria vivência: moro próximo à Escola de Samba Vai Vai. Nas semanas que antecedem o carnaval há ensaios todos os finais de semana, mas nunca isso foi problema para mim. Não que os meus ouvidos tivessem se acostumado com o barulho dos requipes e surdos, mas a minha concentração se direcionava a outros pontos mais localizados. Se alguém não tivesse me dito, não saberia do barulho da escola de samba. Não saberia também do barulho da Rua São Joaquim. Prefiro esquecer que alguém me disse, um dia, que o Templo Busshinji ficava num lugar barulhento. Ou pelo contrário, ainda bem que tem barulho. Não apenas lá, mas igualmente nas proximidades do aeroporto, da Radial Leste, das construções de prédios, dos estádios de futebol, das igrejas evangélicas. Pois o mundo é barulhento. Mas se isso fosse motivo para atrapalhar a minha prática, já teria desistido. Como não pretendo negar o mundo da maneira como se apresenta, então o melhor é adaptar a minha prática com as condições dele: faço zazen no barulho. E haja visto que alguns adoram colocar fones de ouvido enquanto trabalham. Dizem estes também que conseguem concentrar-se mais no serviço com barulho nos ouvidos. Que mundo estranho que vivemos ou será apenas o egoísmo das pessoas, que não param de olhar fixamente para o próprio umbigo.

quinta-feira, novembro 30, 2006

Agora

Há oito dias nasceu na Santa Casa de Patrocínio Paulista a menina Marcela de Jesus. A criança nasceu sem cérebro, e a espectativa dos médicos era de que sobrevivesse apenas poucas horas, no entanto ela já vive há uma semana. Sua mãe, Cacilda Ferreira, ficou sabendo do problema da filha já no quarto mês de gestação, porém nunca cogitou interromper a gravidez – "sua vida pertence a Deus, e não a mim". Ao lado da filha 24 horas por dia, Cacilda amamenta seu bebê e a cobre de cuidados e carinhos. Ela diz que o tempo que a criança viver será o bastante para ela, e quer aproveitar cada minuto desse convívio, uma vida que ela considera um milagre.

Há um poema de Dogen que diz assim:

Como devemos viver?
Nascemos e morremos uma vez nesta vida.
Como devemos vivê-la?
Este é o ponto fundamental do ensinamento de Buda.
Viver muito é algo com o que se alegrar?
A vida não é assim.
É triste morrer após uma vida curta?
A vida não é assim.
O ponto é: como devemos viver?


Que o amor entre essa mãe e filha possa se espalhar pelas 10 direções e pelos três mundos e preencher os corações de todos os seres.



terça-feira, novembro 21, 2006

Pista para o agora verdadeiro


Na pequena praça, rodeada por eucaliptos, jaz a estátua de Mahatma Ghandi, magro, com pouca vestimenta e um cajado na mão - apenas o essencial para um caminhante. A mais ou menos 700 metros dali, dentro do museu, um artista brasileiro residente na Alemanha, apresenta sua obra conceitual dentro de um cubo onde penetramos e observamos dezenas de fotos pornográficas. Logo abaixo dos pés de Gandhi podemos ler uma frase sua "Minha mensagem é minha vida". Ao lado das fotos, uma citação de Ghoete diz: "Antes da palavra houve a ação" e logo depois um complemento do próprio artista: "O que aponta para o ato de refletir (em oposição ao reflexo condicionado)(...)". 700 metros no percurso correto, seja em qual sentido for, criam a correta interseção.

domingo, novembro 12, 2006

Cachaça aos mendigos

Ao doarmos cachaça para um mendigo, não estaríamos dizendo: "Toma, continua deludido"? Não que bebida alcoólica seja sinônimo de delusão e também aqui não quero propor uma atitude moralista do tipo "eu não bebo, ninguém bebe". Que acham? Bom, no natal todo mundo bebe, é festa, uma vez por ano...

quinta-feira, novembro 09, 2006

A religião verdadeira

Falar em uma religião verdadeira talvez possa ser interpretado da seguinte forma: se há uma verdadeira outras são falsas. Claro, sempre a minha em relação às outras. Neste caso, existe um centro irradiador de verdade em detrimento às zonas periféricas. Pode ser que a maior fraqueza das tradições monoteístas seja justamente neste ponto. Existe uma verdade. Esta verdade é única. Portanto, desconsidero todas as demais como falsas. Assim forma-se uma dialética negativa como maneira de afirmar o meu ponto de vista. Também existe nesta situação um recorte dual: o meu e o do outro. Inclusive, estendemos a dualidade no campo da relação com o sagrado: eu e a verdade.
Certa vez, acompanhando o então Superior Miyoshi à Paraíba, a fim de participar de um encontro multireligioso um estudante fez a seguinte pergunta: "Qual é a religião verdadeira?". Sem muito pensar, a resposta foi enfática: "Aquela que promova o bem estar para a maioria". Entendi esta colocação de uma maneira mais prática frente às adversidades. De que uma religião deveria atender as necessidades humanas em primeiro lugar e depois às querelas metafísicas dos dogmas. E neste mundo há idéias demais e pouca ação. Aliás, existe também uma espécie curiosa de "budistas" que se dizem como tais navegando nas ondas da internet e discutindo idéias apenas. Encontrei certa vez um amigo, que treinara zazen mas depois se afastou mas continua "praticando" ao ler os textos budistas. Muito estranho isso. Me parece aquele "entendido" na culinária mundial apenas lendo os livros de receita. Sem provar da comida, nada pode-se falar a respeito dela.
Então estudante de História, em algum momento do curso veio como rajada aquele refrão provocatico: "a religião é ópio do povo". Pensei naquele momento que realmente a religião fosse isso. Não mudei de opinião. O que mudou foi a amplitude da minha reflexão a respeito desta colocação. Há muitas religiões que oferecem ópio, não porque elas assim querem. Existem pessoas que precisam de ópio para continuar vivendo. Quer dizer, o mundo é cruel: os homens são maus, o capitalismo é injusto, a política é corrupta, a justiça é falha, a educação é insuficiente. E ao apegar-se à ideologia salvítica dos profetas milagreiros, como ópio, uma multidão de necessitados fazem fila.
E o budismo também é ópio? Pode-se tornar caso houver praticantes que necessitem desta droga. Se a prática budista consistir na idolatria, sejam das imagens, da alegoria, das cantorias, ou de seu líder. Este é o ópio. Assim, o budismo pode ser tudo aquilo que o praticante desejar que ele seja. Pode-se acreditar no poder de Buda e de seus avatares. E no poder dos mestres? Penso que o pior ópio budista seja quando o mestre se torna idolatrado. Caso isto ocorrer, na minha singela opinião, ele deve ser destruído. Todas as imagens de adoração devem ser destruídas. Quando a destruição se estender a todo ópio budista, então encerra-se o período da ilusão.
Inversamente ao ópio da religião, o budismo se presta a ser a libertação. Por isso, fazer zazen não se ganha nada. Faço tanto reverência a Buda quanto para o mendigo que mora nas ruas. Na verdade, aquele mendigo também é um Buda. Faço zazen nas salas do templo, quanto nas favelas, prostíbulos e prisões. Me parece que os que fazem zazen apenas em lugares tranqüilos como as montanhas são egoístas. Este zazen exclusivista, protótipo da pequena burguesia, é também ópio. Tudo aquilo que estimula a ilusão é ópio. É ópio também os que lêem as frases de efeito do budismo "auto-ajuda" e não fazem nada para transformar o mundo. É cínico praticar o budismo e continuar na inércia do "faço de conta que não vejo nada". Lembrando do exemplo de Sidhartha, o Caminho requer renúncia. Renúncia inclusive da ópio das religiões.
O entendimento do Dharma é como estar navegando num único barco em que todos os outros também se abrigam. Lá se abrigam os cristãos e muçulmanos, judeus e palestinos, sábios e alienados, homens e homossexuais, cachorros e gatos. Caso o barco sofrer uma avaria, todos morrem. Há a necessidade de todos colaborarem para o bem de todos, assim, quem sabe, o barco não afunda. Pensar que apenas os gatos e os homossexuais vão afundar é uma grande ignorância.
Entendo o budismo como uma religião da libertação, que ao invés de ópio, deve lidar com a iluminação. Ajudar a todos, sem discriminação é um ato de iluminação.

Tetsuya Zazen


Prática de zazen sem interrupção. De terça-feira (14 nov), a partir das 18h30, estendendo-se até às 7h30 da quarta-feira (15 nov feriado). Atravessaremos a noite e a madrugada. Estamos resgatando uma tradição da Escola Soto, que se perdeu.

Valor para participaçao:
Doação: 5 kilos de arroz ou feijão ou ainda um litro de cachaça 51.

Estão todos convidados!

quinta-feira, novembro 02, 2006

Seshin no Morro III


Nossos Professores de Prática em momento "místico" - Cerimônia RYAKU FUSATSU no Mosteiro do Morro da Vargem.

terça-feira, outubro 31, 2006

Transmissão pela prática

Conta-nos o mestre Dogen Zenji que, quando encontrava-se em treinamento, nos momentos de zazen, com energia o abade Nyojo admoestava seus alunos: "Não durmam, acordem seus vagabundos". Esta cena experimentei também no Mosteiro Shogoji, ocasião em que o monge Myohonji rompeu a escuridão do Sodo como um trovão: "O que estão fazendo! Acordem neste instante". De fato, a luz tênue da madrugada, às 3h30, propiciava possíveis cochilos. Mas nem por isso, dormir fosse uma atitude tolerável. Toda manifestação de sono devia ser combatido radicalmente com berros de advertência e golpes de kyosaku. Não apenas uma pancada, mas três. Imediatamente os outros, que também entregavam-se àquele capricho, imediatamente corrigiam a postura.
Assim aprendi a respeito do zazen. Ouvi no entanto outros instrutores fazendo considerações mais amenas em relação ao zazen. Diziam estes que dormir no zazen também fazia parte do treinamento. "Dormir quando tinham sono, também é zazen", explicavam. Quanto a mim não tinha que concordar ou discordar. Cabia apenas ouvir e aprender. Mas se retomarmos a maneira do transmissor do Dharma para Dogen Zenji, Nyojo Zenji, é bem menos tolerante. Em se tratando do ensinamento correto, maior compaixão de Nyojo era justamente a falta de tolerância pelo praticante relapso. Segundo os relatos de Dogen Zenji, não apenas o mestre gritava com seus alunos mas batia neles com o seu tamanco. Alguns entendiam a rispidez do mestre e, diante da advertência, choravam emocionados.
Certa vez, os alunos resolveram conversar com o mestre a fim de pedir a ele que maneirasse seus modos. Foi quando Nyojo deixou as lágrimas escorrerem e confessou: "O que mais desejo é que vocês aprendam o ensinamento". E todos os meios ele usava para alcançar seu objetivo. As lágrimas de Nyojo eram um lamento pela própria incapacidade de poder transmitir a verdade da prática. E os alunos, ao invés de preocuparem-se com a verdade, estavam interessados mais na maneira como a verdade podia ser transmitida. Queriam uma prática mais amena, menos radical, mais demorada no pântano da vaidade e apegos. Mas para a Escola Soto, sempre a transmissão foi imediata.
Penso que a relação aluno/instrutor é de cumplicidade e de alta confiança. Assim, um aluno não necessita confiar num instrutor que senta a menos de dez anos. Ou de um instrutor que não se senta. Se um instutor leva a prática do dharma às últimas conseqüências, exigirá que o aluno faça o mesmo. Assim, em algum momento o instutor serve de modelo para os seus alunos. E o que mais pede um instrutor é que o aluno consiga vencer as suas dificuldades e penetre no universo da prática plena e de Iluminação. Desta forma, recentemente o Superior Saikawa me advertiu a respeito de seus discípulos e estudantes. "O que mais quer um instrutor é que os alunos alcancem a Iluminação".
Se não existir este compromisso entre o aluno e o instrutor, o aluno se torna indolente e irresponsável, enquanto o instrutor um farsante. Nenhuma prática comporta esta situação. Se em algum momento existir um aluno que dissimula praticar, talvez exista um instrutor que finge ensinar.
Em alguns textos budistas está escrito que o aluno deve ultrapassar o instrutor em sabedoria ou conhecimento da prática. Penso que um instrutor da verdade assim agiria na transmissão pela prática. Sei também que algumas linhagens costumam idolatrar seus mestres, talvez por vaidade, talvez por falta de conhecimento, por necessidade de um mestre carismático envolto numa roupagem dogmática. Nestes, não se acredita que o aluno passe adiante um dia o seu mestre. Tal qual as tradições monoteístas, ninguém está acima do Ser Absoluto. Mas no budismo não existe tal ser, com poder legítimo capaz de legislar acima dos demais. No caso, acima citado, a necessidade deste ser se explicada pela carência afetiva de explorar melhor suas próprias capacidades para a Iluminação. Não temos que criticá-los. Mas que se saiba que a idolatria é uma ilusão, uma dependência em se criar mitos capazes de nos indicar caminhos possíveis. E nenhum mestre deve se tornar mito. E nem o Buda deve ser mito.
Ainda que tenhamos que ser enérgicos com os alunos, a cumplicidade que criamos com eles (não dependência) nos torna responsáveis também pelas suas vidas. Por isso, estabelecer relações com os seres, quem quer que seja, criamos karmas conjuntos.

sábado, outubro 28, 2006

Sesshin no morro II


Um tenzo vindo diretamento do Japão preparou iguarias que em muito ajudaram nossa prática. Gasshö.

quinta-feira, outubro 26, 2006

quarta-feira, outubro 25, 2006

Um sonho apenas

No leito de morte, o monge Takuan Soho(1573-1645) solicitou um papel branco e pincel. Escreveu o ideograma "Sonho" e deixando cair o pincel entrou na eterna harmonia do Universo. Antes tinha alertado os seus discípulos: "Sepulte o meu corpo na montanha atrás do templo. Cubra-o com lixo e vão para as suas casas. Não leiam sutras e não realizam cerimônias póstumas. Não recebam nenhuma gratificação pela minha ausência seja de monges ou leigos. Deixem os monges usarem os seus mantos e comerem as suas rações. Por fim, levarem uma vida normal". Desta forma, no começo alguns visitarão o seu túmulo mas passado algum tempo nada mais restará dele. Assim desejou Takuan. Takuan Soho: monge zen, calígrafo, pintor, poeta, jardineiro, mestre de chá.
Alguns monges eu tive como modelo para a minha prática, destes Takuan foi o primeiro deles. Quando acabo bebendo da fonte da ilusão, da água amarga das paixões, somente Takuan me faz retornar ao estado de atenção.

Contribuição para uma mística Zen

Certo dia, no zazen da noite, não havia nenhum praticante no templo. Nem mesmo o porteiro havia aparecido. O monge fez, como de costume, os preparativos necessários. Acendeu a vela no altar de Monjusri, ofereceu incenso, tocou o sino de madeira, chamando os praticantes inexistentes a subirem, fez o toque no taiko e sentou-se.
Entre as 19 horas e as 20 horas ele poderia fazer o que bem entendesse. Não seria preciso levantar-se exatamente no horário do kinhin e soar duas vezes o sino, já que o templo estava completamente deserto. Na verdade, não seria preciso nem se levantar para o kinhin. Imerso numa serena meditação, ele poderia se dedicar a aprofundá-la a seu bel prazer durante os próximos 40 minutos. Poderia, também, coçar o nariz, ajeitar-se sobre o zafu, fazer qualquer movimento sem correr o risco de incomodar ninguém. Aliás, poderia até falar ao celular ou dar cambalhotas sobre o tatami. Poderia se sentar no lugar do mestre ou poderia tirar uma agradável soneca.
Por que nada disso aconteceu? Seria apenas devido ao senso de disciplina e respeito? Ou porque se tratava realmente de um monge responsável?
O fato é que às 19:25 ele se levantou, tocou o sino, fez o kinhin. Respeitou os intervalos adequados e todos os procedimentos como se o zendo estivesse repleto de praticantes.
E se sentou para o segundo período de zazen. Neste momento, também havia algumas opções. Fazia frio, ele sentia fome e morava longe do templo. Não seria possível acabar o zazen uns minutinhos antes? Só dependia dele.
No entanto permaneceu, como de costume, sentado até as 19:50, quando silenciosa e cuidadosamente se levantou para os procedimentos do final do zazen. Taiko e sinos foram tocados.
Ao final dos procedimentos, colocou-se de frente para o salão vazio e começou a recitar:
"Respeitosamente dirijo-me a vocês. O nascimento e a morte são assuntos importantes. Portanto, atinjam a iluminação nesta vida. Assim peço, não desperdicem tempo".
A quem ele se dirigia? Que monge maluco! Ele fazia essas coisas por senso de dever, disciplina ou hábito?
Qualquer dessas opções faria com que a prática se tornasse algo muito menor do que realmente é.
A resposta viria logo em seguida, com a recitação dos Quatro Votos do Bodhisatva.
Ainda de frente para o salão vazio, o monge recitou:
"Os seres são inumeráveis, faço o voto de salvá-los.
Os desejos são insaciáveis, faço o voto de extingui-los.
Os portais do Dharma são imensuráveis, faço o voto de atravessá-los.
O Caminho da Iluminação é infindável, faço o voto de percorrê-lo".

"Místico", segundo o dicionário, diz respeito a coisas sobrenaturais, sem bases racionais.

O que, então, pode ser mais místico que os Quatro Votos do Bodhisatva? Nada menos racional que se comprometer a salvar todos os seres, sabendo que são inumeráveis! Ou como querer extinguir desejos que são declaradamente insaciáveis? Como atravessar portais que não têm forma ou tamanho? Ou como se dedicar a um caminho que não tem um destino?

Respondam: o monge estava ou não sozinho?

O que dizer do próprio Bodhisatva, essa curiosa figura que renuncia à própria iluminação para ajudar os outros seres a atravessar para a margem da iluminação?! Como podemos nos dedicar a uma prática que busca a iluminação sabendo de antemão que iremos renunciar a ela?!

Tudo isso é intelecto. E o intelecto caracteriza-se por ter limites, jamais poderá apreender o ilimitado, o imensurável, o infindável.

Respondam: o salão estava ou não vazio?

Naquele momento em que recitava esses versos, o coração do monge tornou-se repleto de profunda alegria, de gratidão pelos ensinamentos que ali praticava, de sincera identificação com todos os seres desse mundo, que nada mais buscam que uma vida justa e livre de sofrimento.
É nesse instante que a mística pode surgir. Sob a forma de uma reverência, ou da emoção de vislumbrar o kesá, ou de uma oferenda de incenso etc. Se soubermos preservá-la para fora dos portões do templo, então entenderemos por que quando uma pessoa está em zazen todos os seres também estão, entenderemos por que Shakyamuni declarou que o mundo todo tinha se iluminado juntamente com ele.

Para isso é preciso abandonar as formas do intelecto.

Cultivemos, portanto, incessantemente, a emocionante mística do zazen!

Intoxicantes e libertação

"Não ingerir tóxicos": o que seriam – ao pé da letra – as substâncias intoxicantes na época de Buda? Alguns tipo de plantas alucinógenas e álcool, provavelmente.
Nos dias de hoje, como devemos pensar nisso? Além dessas substâncias, é preciso refletir também sobre a adequação do consumo de tabaco (que não existia na época de Shakyamuni). Igualmente deve ser preciso também estar atento para a pornografia e a violência transformadas em produto pela indústria da comunicação. Deve-se cuidar também dos apelos ao consumo, que freqüentemente excitam os sentidos muitas vezes mais que substâncias entorpecentes. Tudo isso são coisas de nosso tempo.
Quando ingerimos um cálice de vinho no almoço de domingo com nossos familiares, estamos ingerindo susbstâncias entorpecentes? Muitos podem dizer que não – argumentando, inclusive, que a medicina tem afirmado que tal consumo seria saudável ao organismo. Porém o que dizer sobre as milhares de vidas e famílias que são destruídas pelo vício ao álcool? Ou sobre os acidentes de trânsito que são causados por corretos cidadãos que apenas ingeriram uma ou duas cervejinhas na casa da sogra? Será que esses aspectos também não estão contidos naquela taça de vinho?
Da mesma forma pode-se pensar nas imagens violentas e pornográficas veiculadas constantemente pela TV. Quanto sofrimento elas causam em quem as recebe – na medida em que aprisionam o indivíduo em seus sentidos – e quanto sofrimento elas já não causaram para serem produzidas? Ou, então, nos insistentes apelos ao consumo, que muitas vezes levam a pessoa a ficar aprisionada num ciclo de desejos e dívidas.
Uma psiquiatra relatou o seguinte: hoje em dia, são freqüentes os distúrbios compulsivos alimentares. Muitas mulheres da classe alta, que podem pagar por esse tipo de intervenção, têm optado pela cirurgia de redução de estômago, para tentar resolver esse problema. Porém um interessante fenômeno tem sido observado em seu consultório: muitas dessas mulheres, após a cirurgua, impossibilitadas fisicamente de se alimentar exageradamente, têm se tornado consumidoras compulsivas. Gastam dezenas de milhares de reais em uma tarde, sem saber o porquê.
Cada tóxico tem seu próprio vazio. Podemos apenas fugir deles, da maneira que se diz popularmente "como o diabo foge da cruz", motivados tão-somente pelo medo. Porém isso não basta. E se o medo diminuir? E se formos pegos desprevenidos? É preciso, através da prática incansável do zazen, penetrar profundamente em sua verdadeira natureza. Quando da observação implacável do zazen emerge todo o sofrimento que esses comportamentos trazem, o apego a eles se desmancha no ar e a libertação surge.
Um a um, a seu tempo, sem temor, vão sendo derrubados pelo praticante, confiante, aprumado e sereno em seu zafu.
Entreguem-se ao zazen.

terça-feira, outubro 24, 2006

Prática sem droga

Houve uma época em que os inconformados buscavam abrigo em alguns refúgios. Época de contestação dos Anos de Chumbo - décadas de 60 e 70. No auge da Guerra do Vietnã, um monge nativo chegou a incendiar as próprias vestes para que o conflito terminasse, com a retirada das troças americanos de toda Indochina. Tempos em que os soviéticos invadiam a Checoslováquia e em Paris os estudantes tomavam as ruas. Em meio aos protestos, o existencialismo francês antagonizava-se entre Jean Paul Sartre e Albert Camus. Se alguns lutavam nas ruas, em meio à desilusão dos tempos modernos, outros entregavam-se às drogas. Falava-se em Paz e Amor. Tinham por tríade ideológia - ou anti-ideológica - drogas, sexo e rock'n roll. Mas também os inconformados descobriam o Zen Budismo através de D.T. Suzuki, de Jack Kerouac, Allan Watts e Tomas Merton. No Brasil, o velho casarão da rua São Joaquim era onde aconteciam as sessões de zazen. Sem falar uma única palavra de português, o Superior Shingu atraía dezenas de praticantes.
Este tempo se foi, mas o Zen continuou a fazer parte da vida dos inconformados. Talvez antigos leitores de Sartre, Camus, Ponty; agora leitores de Derrida, Deleuze e Foucault.
Da tribo "drogas, sexo e rock'n roll", estes também acabaram se transformando. A partir da revolução sexual nada se tornou proibido e não desperta mais o interesse dos antigos moralistas. São outros os moralistas da atualidade. Quanto ao rock, somente ficaram as lembranças: Alice Cooper se foi, Led Zeppelin está velho, Joe Cocker não sei que fim levou. Mas me lembro que Jimmy Hendrix e Janis Joplin morreram por overdose. A droga também caiu no desprestígio.
De todas estes comportamentos, o que mais incompatibiliza-se com o Zen é justamente a ingestão de drogas. Nada justifica do ponto de vista budista a sua ingestão. Está claro num dos preceitos: "não ingerir tóxicos". Não que o budismo preze os valores morais, combatendo o uso de drogas, mas porque a sua utilização vai contra o Caminho da Iluminação. Dos estados de consciência, a Iluminação é a consciência no mais alto nível. Em se tratando das drogas, parece que acontece justamente o inverso: alimenta a Ilusão. Tal atitude que nega o estado de consciência por meios artificiais, é a fuga da "realidade". Ainda que a "realidade" seja o Samsara para os budistas - um sonho - não pode ser negado simplesmente. A respeito, quando Buda se encontrava abaixo da árvore de Bodhi e o demônio Mara o admoestou, ele apontou com a palma a terra. Com os pés firmes no chão, o praticante deve avançar. Me parece que a droga afasta o homem das condições reais de existência, que é no mundo do Samsara. Se o Samsara se apresentar como fogo, ao ingerir droga o praticante é igual a madeira. Assim, deve se tornar fogo em meio ao fogo. Se o Samsara for água, ao ingerir droga o praticante é igual a fogo. Assim, deve se tornar água em meio a água. Mas se o Samsara for terra, o praticante pode ser madeira e assim crescer e desenvolver-se até as estrelas. Quanto à droga, nenhum sucesso pode ser realmente alcançado. Aqueles que necessitam dela, não possuem caráter para caminhar a passos largos com as próprias pernas. Ao contrário disso, o homem se torna um dependente, necessitando sempre de bengalas e muletas. Da saudade dos Anos Dourados guardo na memória as partidas de xadrez, a música eletrônica de Emerson Lake and Palmer, o teatro de Sartre e as primeiras leituras de Zen. Mas da droga, não me restou nem cinzas. Intoleravelmente contra as drogas tidas leves ou pesadas, pois ambos são droga. E quem necessita delas são igualmente drogas e necessitam de cuidados especiais.

segunda-feira, outubro 23, 2006

Os quatro paramitas

Qualquer praticante do dharma deve levar em consideração as quatro formas de manter-se em vigília:
1. dana - ou doação.
2. sila - conduta moral, os preceitos.
3. ksanti - paciência.
4. virya - vigor, devoção, energia.
5. dhyana - concentração.
6. prajna - sabedoria.

1. Sem doação, a prática deixa de ter validade. Podemos doar dinheiro, alimento, roupa, trabalho ou uma palavra de bondade. Quer dizer, de maneira desinteressada oferecemos aquilo que está ao nosso alcance. Tendo em vista a doação, juntamos as palmas e fazemos gashô. Certa vez o Superior Miyoshi chamou em sua direção a nova discípula e ensinou: "veja, se você abre as mãos tudo que tem dentro sai, mas também o que está fora entra". Doar, em sí, é igualmente receber. Entretanto, o praticante sério nunca tem os olhos voltados para recompensas. Não se doa para receber, apenas se doa.
2. Ao que se refere à conduta moral, trata-se dos preceitos assumidos quando da aceitação dos mesmos pelo praticante. Isso ocorre na ordenação como discípulo de Buda. O primeiro destes é "não matar nenhum ser vivo". Não apenas seres humanos mas qualquer forma de vida. Nenhuma vida é inferior e nem superior -sem discriminações. Outros preceitos estão presentes como "não roubar", "conduta sexual inapropriada", "ingestão de alucinógenos" e "não mentir". Ao invés de decorar uma lista de preceitos, seria mais inteligente que a partir de nossa prática possamos saber o que realmente deve ser evitado. Visto desta forma, a ingestão de drogas não é por ser um preceito mas um ato de sabedoria. Quer dizer, a droga afasta o praticante daquilo que ele mais procura: a Iluminação.
3. Nenhuma prática é mais dolorida do que a paciência. Sem ela, cansamo-nos rapidamente e a prática torna-se uma tortura. A paciência é justamente a nossa capacidade em insistir com o treinamento. O patriarca Bodhidharma é representado por um boneco redondo, com peso na parte inferior. Mesmo que seja derrubado, levanta-se. Um velho ditado do folclore japonês diz: derrube-o setes vezes, ele se levanta oito. Por sete vezes ele tentou penetrar na China sem sucesso, somente na oitava conseguiu.
4. Aquilo que se chama energia surge nos momentos de dificuldade ou simplesmente deixa de surgir. Alguns desistem, outros, ao contrário insistem. Os fracos não são isentos de energia, mas acreditam na incapacidade de usar a energia que têm. No processo de abandono e renúncia toda a energia se faz presente e o medo desaparece, também a insegurança e a dúvida.
5. Se não existe meditação, o budismo no sentido radical deixa de existir. Quer dizer, seguir os passos de Buda, que entregando-se à pratica do zazen logramos atingir a Iluminação. Seria falso falar em budismo sem Iluminação. Mas existem alguns que pensam desta forma e assumem a própria incapacidade. Ao invés da meditação exercitam-se em outros modelos como recitação de mantras, prostrações, oferecimento de incensos e outros. Nada disso leva à Iluminação.
6. Por fim, a sabedoria é o ponto mais alto da montanha que leva à Iluminação. Não se adquire lendo livros ou ouvindo palestras. A sabedoria é a descoberta através da própria experiência aquilo que fica além da linguagem comum: conceitual e dualística.

Obs. Todos os seis paramitas devem estar juntos, sem que um seja melhor do que o outro. Sem sabedoria não há iluminação; sem energia não há paciência; sem conduta moral não há sabedoria; sem paciência não há concentração; sem concentração não há iluminação, assim por diante. Praticantes, pratiquem os Seis Paramitas. Se agirem assim, estarão no Caminho Correto.

Prática mística ou Mística da prática

Fica por conta de cada interessado na prática do dharma, inclusive na tradição zen. Seria estranho chamar o Zen de prática mística, mas talvez alguns o encarem um pouco desta forma. Assim, acendem incenso, tocam o sino e têm uma imagem de Buda num altar. Penso que desta forma criam condições apropriadas que podem melhorar a concentração. Não que seja necessário. Fazer zazen, em qualquer lugar que seja. Certa vez fiz na Casa de Detenção de São Paulo - o famigerado Carandiru - ao lado de presos que cumpriam penas por delitos desconhecidos por mim. Mas o que se sentou ao meu lado confessou: "amanhã serei julgado por ter matado a minha esposa". Neste caso não se tratava de prática mística. Não importa, às vezes realizamos uma prática em que elementos místicos podem estar presentes, outras vezes em qualquer outro lugar. Alguns preferem as matas, na tranqüilidade das montanhas. Dizem estes últimos que querem receber a energia das plantas e respirar o ar puro.
Aprendi que quando Sidhartha vislumbrou adiante a estrela da manhã e tornou-se um com todo o universo, conclamou: "neste momento eu e todos os outros seres alcançamos a liberação". Quando nos sentamos, todos os Budas se sentam conosco. Acredito que "sentar-se" não tem por finalidade criar bem estar naquele que experimenta, mas despertar a compaixão e a sabedoria. Não se faz zazen para ficar bem. Nem para respirar ar puro, nem para receber energia. Me parece um pouco egoísta tal atitutude. Ainda que a nossa relação com o místico esteja presente, não podemos deixar que o misticismo seja tranformado em ponto principal. Se isso acontecer, agiremos como macacos tentando agarrar a lua refletida na água. É ver o dedo do mestre que aponta para a lua, sem ver a lua realmente.
Ao invés disto, a prática realizada com toda a atenção nos revela uma faceta mística do dharma. É a mística da prática que tenho procurado em toda a minha vida. A respeito, quando estive no Japão, em treinamento no Mosteiro Shogogi percebi que no processo de abandono, do esmagamento do ego, a interdependência não era apenas palavra mas condição concreta para a nossa existência. No caso, trata-se de uma maior interação com o universo, mais do que isso: não existia nem eu, nem o outro. O mestre Dogen Zenji disse apenas: corpo e mente abandonados, abandonados corpo e mente. Não é uma prática mística, mas a sua realização revela um universo místico.
Entre nós, somente os que participaram de um sesshin completo: sentando-se 8 horas por dia, mantendo o silêncio, realizando o dokusan experimentaram algo parecido. Temos que levar esta experiência para o nosso cotidiano: a atenção. No nosso dia-a-dia somos acometidos por uma quantidade enorme de informações, que não pertencem a nós. Submetemo-nos a condições impostas pelo meio em que vivemos. Usamos as roupas que os outros usam, pintamos os nossos rostos, os lábios, e falamos igualzinhos aos outros. Em suma transformamo-nos no outro, totalmente diferente do que realmente somos. Pensamos e falamos como fôssemos o outro. Freqüentamos os mesmos lugares, achando que somos originais. Acabamos nos esquecendo da nossa prática e assumimos a nossa condição de macacos. O que um faz todos os outros fazem. Ainda que seja assim, agindo como iludidos, temos que manter a chama da prática em nossas mentes. O pior é crer que a ilusão seja verdadeira e condição primordial em detrimento da própria verdade.
O que realmente importa é termos condições de ver a verdade, com olhos da iluminação através da bruma provocada pela ilusão. Ou seja, esta é a mística da prática. Com os pés firmes no chão ao invés de andar sobre as águas. Nada de sobrenatural, nada que seja mágico. No dharma nada disso tem lugar - apenas a verdade.

quinta-feira, outubro 19, 2006

Sentar-se mais, um pouco mais

Ao final de uma sessão de zazen, à noite, o jikido após bater o uchi-dashi no mokuhan anuncia em alta voz: a vocês, praticantes me dirijo respeitosamente; o nascimento e a morte são assuntos importantes, portanto Iluminem-se nesta vida; assim peço, não percam tempo. De fato, quando se fala em nascimento e morte, trata-se da vida, o intervalo entre estes dois pontos "antípodas". Dogen Zenji em Shushogi diz que "a vida é como fosse um tiro de flecha", mais rápido do que pode parecer. Mas inversamente, perdemos tempo mergulhados numa mar de ilusões. Alguns ao invés de priorizar o tempo de vida que lhe resta, continuam cometendo os mesmos erros. Deixam de praticar o "caminho da iluminação" a fim de procurar medicina paliativa das ervas entorpecentes da ilusão: fórmulas mágicas e cantorias, espírito das matas, duendes e anjos. Realizam estes visitas em muitas casas, num ato de turismo religioso que nunca chega a lugar algum. Tal qual os alucinados de uma noite de verão, após a ressaca de uma madrugada em ebulição, tropeçam nas próprias pernas. Os olhos que deveriam divisar um só horizonte perdem em outros pontos, pois a nossa visão turva-se da areia quente da insolação. Perdemos tempos demais. Praticantes do Dharma, construam com os passos do caminhante a senda da iluminação: sentem-se. Buda sentou-se apenas. Se Buda é o mestre, nossa referência, podemos criticá-lo e a nós mesmos. Mas retornemos ao nosso "sentar-se". Somente os que se sentam podem "dialogar" com o Buda e ele nos ouvirá. Abandonando-nos no "sentar-se", esquecemos e de nós mesmos e a nossa mente se tornará mente de Buda. O erro maior, o maior de todos, é treinar a mente para se tornar a mente de Buda, retornando à mente da ilusão completa quando deixamos de sentar. Nesse caso, cria-se um abismo entre a prática de sentar-se e a prática no mundo das paixões. Quando existir esta separação, o que falta no praticante é dedicação em sentar-se. Sentar-se mais... E mais... Se isso não ocorrer, o zazen indisciplinado tor-se-á um adorno em nossa fantasia de carnaval. Não percam tempo, pois o tempo urge? A invés de sermos prisioneiros do tempo diacrônico em que o "agora" não existe, pois se tornou passado, possamos descobrir o agora real no tempo do Dharma. Neste o eu não existe e nem o outro!

sábado, outubro 07, 2006

sexta-feira, outubro 06, 2006

A mente atenta

Muito se fala a respeito da mente atenta, entretanto poucos conseguem mantê-la neste estado. Quando realizamos a prática do zazen, treinamos a mente alerta. Naquele momento não dormimos, não cochilamos, não pensamos, nada fazemos. Mas se isso vier a acontecer, ao deparmos nossa hesitação, voltamos novamente à antiga postura. Por algum momento, quem sabe, o sono nos rouba a atenção. O mesmo acontece com o fluxo de pensamento. Se ao contrário, alimentarmos o nosso sono, o nosso pensamento, o zazen deixa de existir. Quer dizer, a atenção foi substituída pelo devaneio. Então, a mente deixa de estar atenta. Enganam-se aqueles que procuram relaxar-se nos instantes de zazen, como fosse uma "fuga" de seus problemas corriqueiros.
Para que a mente esteja atenta é necessário treiná-la. Trocando em miúdos, fazer zazen. Claro, para todos existe um rítmo e uma necessidade. Para alguns, uma vez por semana é o suficiente. Ainda que seja uma vez apenas, deve-se respeitar a disciplina e aparecer no dojo para fazer zazen. Sem disciplina a nossa mente também acostuma-se à indisciplina e o zazen feito esparçamente não tem validade. Alguns fazem zazen de maneira esparça: quanto sentem vontade. Bem, não é uma maneira muito saudável de praticar o zazen. Nesse caso, parece-me que o zazen torna-se apenas um paliativo, algo parecido como um adereço para a nossa fantasia de carnaval. Ao contrário, para o praticante dedicado, o zazen é alimento e o ar que respira. Sem alimento morremos, assim sem zazen mergulhamos fundo em nossas ilusões. Um zazen esporádico torna-se uma brincadeira, tal qual ocupamos o nosso tempo livre para um relaxamento.
Quando digo, cada um é responsável pela quantidade de zazen a fazer, a intensidade com que é feito, a qualidade do zazen realizado, demonstra o perfil de praticante. Cada um se esforça conforme não apenas suas necessidades mas também limitações. Problemas de natureza orgânica talvez impeça uma presença mais dinâmica no dojo. Alguns dizem que enfrentam problemas de tempo: trabalham muito. Por ser livre, o zazen pode ser realizado de acordo com liberdade de escolha de cada um. Em nossa vida, fazemos opções. Nesse caso, o zazen também pode ser visto desta maneira. Depende logicamente de nossas prioridades. Ainda não chegamos no grau de desapego, o suficiente para o ingresso total no Caminho da Iluminação.! Não está errado, apenas não chegou o tempo!
Assim posto, o zazen realizado de maneira "light" também tem conseqüências "light". Por isso, a prática na vida diária é necessário muito mais atenção. Mas a mente se nega a ficar atenta. Ao invés disto, continua insistindo em apegar-se à idéias, conceitos, preconceitos, raiva e ignorância. Continua como sempre fazendo avaliações e comparações de ganho e perda, de premiação e prejuizo, de custo e benefício. Se este comportamento perdurar, o zazen se torna algo separado de nossa vida, criando um campo amplo de dualidades. Durante a prática no templo envergam o manto negro do treinamento, assim que terminam retomam novamente a roupa comum das atividades ilusórias. Quero dizer, não se trata tanto da roupa mas da troca da atitude mental.
Que não seja assim. Carreguemos em nossa mente o manto negro da prática do Dharma ao enfrentarmos as intempéries das oscilações do temperamento do demônio Mara. Aquele que mora em nossa mente e se chama Ego. E quando o Ego se inflama, a ilusão se reforça. Seria necessário que Buda empunhando o kyosaku nos golpeasse cada instante que o Ego aparecesse como nuvens intempestivas da ilusão. Mas tanto a ilusão como Buda moram em nossa mente.
Manter a mente alerta é reconhecer a fluidez do Ego, a sua insustentabilidade.
Basta alguém falar mal de mim para receber o troco. Cuidado, cuidado se isso acontecer.
A prática do Caminho da Iluminação é para poucos. Não dos escolhidos, mas dos que treinam arduamente. Dito de outra maneira: mente alerta. Não acreditem naqueles que treinam mas se irritam por pouco, xingam, são insolentes e egoístas, enchem-se de orgulho, ficam magoados e autocomiserando sua dor.
Enfim, pratiquemos com força e alegria.

Conflito

Alguém sabe dizer qual o significado do conflito? Alguém sabe dizer porquê, ou para que serve entrar em conflito consigo mesmo e logo com o mundo, ou, com o mundo e logo consigo mesmo? O que é que se ganha? O que é que se prova e a quem? Tão enraizado está o conflito que não nos fazemos mais esta pergunta. Alguém sabe? Para que serve?

quinta-feira, outubro 05, 2006

Fantasmas

A prática do dharma nos ensina a lidar com nossos fantasmas, isto é certo. E, olha bem, palavras, olhares, gestos e lembranças de outras pessoas, de amigos e até de parentes próximos, se estagnados em nosso coração, têm uma grande tendência a virarem fantasmas. Podemos então olhar para os nossos fantasmas como fantasmas apenas, coisas sem consistência por si só. Aprendemos a não cultivá-los, até porquê, segundo um amigo, eles crescem, crescem muito, ficam obesos e cheiram mal, muito mal. Seria uma ilusão achar que iríamos fazê-los irem embora apenas detectando-os e os expulsando a força, aos gritos. Não, é disso que eles gostam, quanto mais os expulsamos, mais eles voltam, quanto mais deles desdenhamos, mais eles crescem, e o mesmo serve para nossos inimigos. Sendo assim, apenas deixemos que vão, podemos nos desapegar destes nossos bichos de estimação, é possível, somos nós que, ativamente os liberaremos de nós mesmos, porquê o coração livre, este, já o possuímos de nascença, faz parte da "genética" do dharma.

terça-feira, outubro 03, 2006

Karaniya Metta Sutta – Amor Bondade

Quem é hábil no que é benéfico, desejando alcançar

aquele estado de paz, age assim:

capaz, correto, honrado,

com a linguagem nobre, gentil e sem arrogância,

Satisfeito e fácil de sustentar,

com poucos encargos, frugal no seu modo de vida,

os sentidos acalmados, sábio,

moderado, sem cobiçar ganhos.

Não faz nada, mesmo que trivial,

que seja condenado pelos sábios.

Pense: felizes, seguros,

que todos os seres tenham os corações plenos de bem-aventurança.

Todos os seres vivos que existem,

fracos ou fortes, sem exceção,

compridos, grandes,

médios, curtos,

sutis, grosseiros,

Visíveis e invisíveis,

próximos e distantes,

nascidos e por nascer:

que todos os seres tenham os corações plenos de bem-aventurança.

Que ninguém engane

ou despreze outrem, em nenhum lugar,

ou devido à raiva ou inimizade

deseje que alguém sofra.

Tal qual uma mãe, colocando em risco a própria vida,

ama e protege o seu filho, o seu único filho,

da mesma forma, abraçando todos os seres,

cultive um coração sem limites.

Com amor bondade para todo o universo,

cultive um coração sem limites:

Acima, abaixo e em toda a volta,

desobstruído, livre da raiva e da inimizade.

Quer seja parado, andando,

sentado, ou deitado,

sempre que estiver desperto,

cultive essa atenção plena:

a isto se denomina uma morada divina

no aqui e agora.

Sem estar aprisionado pelas idéias,

virtuoso e com a visão consumada,

tendo subjugado o desejo pelo prazer sensual,

ele não mais renascerá.

quinta-feira, setembro 07, 2006

Ensinamento de Nagasena ao Rei Milinda

Nagasena, o sábio budista, tentou explicar ao Rei Milinda a visão de que os indivíduos são um agregado de atributos, tais como intelecto, emoções, corpo, todos temporais e em constante mudança. Para tanto, serviu-se do exemplo da carruagem e disse:

"Ouça, ó grande rei, por acaso o timão é a 'carruagem'?"
"De fato não é, reverendo senhor."
"O eixo é a 'carruagem'?" - "De fato não é, reverendo senhor."
"Será que as rodas são a 'carruagem'?" - "De fato não, reverendo senhor."
"O corpo da carruagem é a 'carruagem'?" - "De fato não, reverendo senhor."
"O mastro da carruagem é a 'carruagem'?" - "De fato não, reverendo senhor."
"A canga é a 'carruagem'?" - "De fato não, reverendo senhor."
"As rédeas são a 'carruagem'?" - "De fato não, reverendo senhor."
"O chicote é a 'carruagem'?" - "De fato não, reverendo senhor."
"Bem, grande rei, a soma total do timão, eixo, rodas, corpor da carruagem, mastro, canga, rédeas e chicote constitui a 'carruagem'?" - "De fato não, reverendo senhor."
"Bem, grande rei, a 'carruagem' é algo além da soma total do timão, eixo, rodas, corpo da carruagem, mastro, canga, rédeas e chicote?" - "De fato não é, reverendo senhor."
"Grande rei, fiz todas as perguntas de que posso pensar, mas não consigo descobrir a 'carruagem'! "Aparentemente, a 'carruagem' não passa de um som."
(O rei explicou) "Por causa do timão e por causa do eixo, por causa das rodas e por causa do corpo da carruagem, e por causa do mastro, o epíteto, a designação, o título, o estilo, o nome 'carruagem' é usado correntemente."
Nagasena replicou que o mesmo é válido para o indivíduo. "Por causa dos vários órgãos do corpo, por causa da sensação, da percepção e da consciência, por causa de tudo isso, entra em uso o epíteto, a designação, o título, o nome - mas apenas o nome - 'Nagasena'. No sentido mais elevado da palavra, entretanto, não se pressupõe, a partir daí, que qualquer 'indivíduo' exista."

(Burlingame, 1922, pp. 202-204).

quinta-feira, agosto 31, 2006

Religião

Aspiração ao caminho de Buda

Há religiões em que se espera por um milagre,
e outras em que se reza por poderes sobrenaturais,
há até religiões em que se implora por sucesso nos negócios.
Mas a religião de Buda é uma religião em que se busca
orientar a sociedade e servir às pessoas.
A aspiração ao caminho de Buda significa
amar todo o universo assim como os pais amam seus filhos.

***

A religião justa

Muita devoção à sua própria religião e difamação
à religião do outro resulta em ódio e discussão.
Há estupidez maior que isso?
A religião justa em todos os tempos é aquela que ilumina as pessoas
e conduz a uma maneira pacífica de viver.
Pessoas religiosas nunca devem sacar espadas umas contra as outras.

(Eihei Dogen)

segunda-feira, agosto 21, 2006

sexta-feira, agosto 18, 2006

O Portal do Ingresso

Reza a tradição que, quando o interessado a noviço desejava ingressar no Mosteiro de Shaolin, China, esperava no portal durante uma semana. Se durante o período de aceitação de candidatos a monges uns vinte chegavam, no segundo dia alguns tinham desistido, mais alguns dias se passavam e outros se avadiam, mais outros, até que depois de uma semana três ou dois, ou apenas um ainda queria ser aceito. Mas aqueles, que esperavam ficavam o tempo todo em pé, fizesse chuva ou nevasse durante o dia. À noite dormiam, para que no dia seguinte mais uma vez exercitarem a paciência.
Foi nas proximidades de Shaolin que o eremita Bodhidharma recolhido a uma caverna praticou por nove anos o zazen. Não queria receber ninguém. Sabendo o mal humor do anacoreta indiano, o jovem chinês Eka admoestou-o: "Quero ser seu discípulo". "Vá embora", retrucou o santo. "Não vou arredar pé daqui até me receber como o praticante do dharma", insistiu. Lá fora nevava. Por dias, Eka continuou à porta da caverna a fim de que Bodhidharma instruísse-o. Nada acontecia. Nenhuma palavra. Numa última tentativa, Eka sacou sua espada e decepou o braço esquerdo. Assim diz a lenda: "a neve branca tingiu-se de rubro". Reconhecendo a vontade de Eka em praticar, Bodhidharma tornou-o primeiro patriarca chinês do budismo Zen.
Ainda hoje nos templos do oriente este ritual segue, lembrando o gesto de Eka. Quando estive no Mosteiro Zuioji, antes de ingressar, após bater o kaishaku (duas madeiras) um monge dirigiu-se até mim, no frio da manhã de março, e perguntou-me.
- O que você veio fazer até aqui?
Por um momento, as palavras me fugiram.
- Vim praticar - disse convicto.
- Praticar o quê.
- Quero praticar o Caminho - arrisquei.
- De onde você vem? - confundiu-se ele.
- Chego do Brasil.
Pensou um pouco, nem imaginando onde ficasse o Brasil. Diante dele alguém tinha feições orientais e falava um pouco de japonês. Talvez isso o deixasse intrigado, mas sem relaxar as feições rudes, apontou a parede.
- Fique lá, olhando para a parede.
Assim fiquei uma hora, duas horas... Era frio e os pés me gelavam. Uma vez ou outra ouvia vozes atravessando o jardim de pedras.
Passado algum tempo, longo tempo, não sabia quanto, o mesmo monge com a voz baixa perguntou-me novamente.
- O que você veio fazer aqui.
- Bem, quero vivenciar na prática o budismo.
Assim fui aceito no mosteiro. Desta vez mostrando um pouco afabilidade, entregou-me um balde com água quente. Pude retirar minhas sandálias de palha, o par de tabis, rotos após a andança até o templo. O calor da água causou-me uma sensação de agradável bem estar. Mesmo assim, tinha que passar por outras provas. Por uma semana trancaram-me numa sala, o tangaryo, onde passava o tempo todo fazendo zazen e estudando os textos. Mais dois noviços estavam no recinto. E assim pude relaxar-me, pois poderia usufruir da companhia deles. Segundo eles, o noviço anterior, um americano, tinha ficado só, sem ninguém para conversar. E nevava lá fora. Pouca roupa para cobrir o corpo, mas mesmo assim a desistência não passava em nossas cabeças.
Nada disso do acima descrito se compara com a prática do dia a dia. Somente aquilo que colocamos reforça, de maneira enfática, a vontade de treinar. Ou a total desistência. Quando fui ordenado, em 89, um colega muito mais preparado do que eu também recebeu os votos. Um pouco mais de um ano depois, ele desistiu. Por teimosia, continuei. Esta teimosia acabou se tornando em minha fé na prática árdua e objetiva no budismo. Bem, aquilo que chamo aqui de budismo é a vida. Assumindo compromissos, assumimos uma postura de vida. Não tem nada a ver em acender incenso ou cantar os sutras, mais do que isso.
Se no início o budismo nos parece encantador, estamos ainda mergulhados em nossos sonhos, pois não enfrentamos ainda os nossos medos e orgulho. Muitos são os que ingressam no Portal da Sabedoria, mas poucos continuam. Trilhar na Senda da Sabedoria é muito mais difícil do que viver na ilusão. É a ilusão do Eu, da existência independente do Eu. Enquando se oferecer um incenso para Buda, estamos apegados a uma idéia de Buda. Mas se oferecemos um incenso para Buda e outro para o demônio, destruímos a dualidade. Fiquem tranqüilos, não faço apologia do demônio. Este trata-se aqui de uma alegoria. Quer dizer, acendo o incenso para os mestres, para os amigos, para os meus pais mas também para os que considero inimigo. A compaixão surge quando quero também ajudar os meus inimigos. Na verdade, não existe inimigos, mas apenas projeção de minha mente egoísta. Com a discriminação de minha mente chamo de inimigos aqueles que me desagradam.
Mas veja bem, os "inimigos" são geralmente os melhores mestres da prática. As dificuldades são os melhores momentos da prática. Nada melhor do que as contradições. Mas quem deseja realmente enfrentar os dilemas da vida, vivendo em pela harmonia com o diferente? Poucos, creio eu! Certa vez li uma declaração do Dalai Lama: "não quero que todos se tornem budistas, pois o budismo é muito difícil de ser praticado". Praticar o Caminho requer acima de tudo um gesto de humildade: "destruam o meu ego". Entretanto, o apego ao ego é mais do que a própria vontade de praticar. Posso dizer de outra forma: praticar o budismo é desapegar-se do ego. E quanto maior é o ego, menor é a força da prática. A estes, nada mais resta do que continuar acreditando em suas crenças fantasiosas de um mundo dualista e centrada na valorização do ego.

segunda-feira, agosto 14, 2006

Daqui

Entre os olhos
e a mente, o mar
Entre a pele
e os ouvidos,
o vento

Armação de Búzios, RJ.

domingo, agosto 13, 2006

Por uma mística zen

Por muito tempo, a questão mística, de qualquer manifestação religiosa parecia-me algo restrito a determinados ascetas, afastados do convívio social, talvez isolados nas montanhas. Hoje penso que pode ser diferente. Entretanto, a percepção da entrega mística aconteceu comigo na "Garganta do Portal do Dragão". Assim era chamado o local em que ficava o Mosteiro Shogoji, na província de Kumamoto, Japão.
Quando estamos entregues nesta prática, de total desapego, num mosteiro em que não há luz elétrica, acorda-se para o zazen às 2h55, todas as manhãs, acabamos nos confundindo com a natureza. Por causa das montanhas, as nuvens ficam baixas e próximas dos nossos olhos. Não é incomum a ocorrência de tufões, que o chefe da aldeia avisa com três dias de antecedência. Antes, os monges limpam o terreno durante a maior parte do tempo, recolhendo o lixo, esvaziando as fossas dos esgotos. A respeito, todo o sistema de recolhimento de resíduos é constituído de um processo de transformação orgânica.
Sem dinheiro para gastar, sem rádio, sem televisão, sem ingerir carne e com muito trabalho, o monge vai se transformando também. Diante da natureza selvagem, o homem sente a sua fragilidade. Sente-se, no primeiro momento, imensamente pequeno. Uma imensa escadaria de pedra com cantos cortantes conduzia os visitantes até um pátio, de onde se avistava o Hondo - Sala de Buda. Ao deparar-me com o perigo, cheguei a pensar: "os japoneses, ao invés de facilitarem a vida dos homens, mantém a natureza intocável". Muitas vezes, tive que subir ou descer estas escadarias com guetas - tamancos altos, sustentados por duas bases. Certa ocasião, tive que descer as escadarias em noite de tempestade, com um guarda-chuva numa mão, na outra um farolete. Numa escada totalmente irregular, o mesmo poderia se dizer do caminho acidentando que conduzia até os nossos quartos. Cheguei a enfiar o pé um buraco e lá se foi o meu tamanco.
Com o tempo, a natureza indomável do Japão não nos parece tão hostil assim. Mais tempo se passa, e acabamos nos esquecendo da natureza. E esquecemos de nós próprios. Nada nos importa mais, totalmente abandonados. Estamos no templo de Daichi Zenji, o antigo patriarca que lá habitou. O poeta que admirava as montanhas, com quem conversava: "Vejo as montanhas/ As montanhas me vêem".
Toda esta integração com as montanhas, os tufões, as tempestades torrencias de três dias seguidos não quer dizer que estamos ilesos de nossas dificuldades. Um resto de ego ainda está presente em nossa mente. Mas ainda assim, o nosso esforço é imenso em realizar as nossas tarefas com grande esforço. Quando mais nos abandonamos, maior é a nossa força para vencer as dificuldades. Às vezes, surge algum indício de estafa, mesmo assim não nos deixamos entregar. Continuamos... Sem nos entregar, continuamos. É como uma queda no abismo, quando nos agarramos no capim para não cair, quando as mãos cansam, restam-nos os dentes; com os dentes nos agarramos. E os dentes ao não conseguir mais segurar, vem a queda. Mas sem medo da queda, abandonamo-nos mais uma vez. A mística zen é justamente o total abandono, aprofundando-nos na forma mais radical da prática. Parece que as condições do universo, novamente remanejadas, tomam um novo rumo e o praticante recupera a sua auto-confiança.
Retomemos a nossa prática na vida ordinária, dos acontecimentos temporais. Penso que podemos levar a nossa experiência no ponto mais crítico. Ao invés de tufões e tempestadades, temos pela frente um mal maior: o EGO. Assim, o Ego sofre, o Ego agride e é agredido, o Ego pensa e avalia, o Ego se acha maior, o Ego se inflama e quer elogios, enfim o Ego é uma grande droga. Mas sabedor disso, o praticante trabalha o seu Ego. Dentro do Ego do praticante existem dois eus: e Eu da prática e o Eu do iludido. Nas mais diversas situações, os dois eus devem dialogar:
- Tenho que controlar meu egoísmo - diz o eu da prática.
- Nada disso, você não tem sangue de barata - diz o eu da ilusão.
- Mas o egoísmo é um mal - continua o primeiro.
- Se você não lutar pelo seu amor próprio, você passará por bobo - contra-argumenta.
- Se cometi um erro, devo demonstar meu arrependimento - arremata este.
- Você não fez nada de mal, afinal errar é humano - justifica o da ilusão.
- Nisso você tem razão, mas posso remediar ao reconhecer o meu erro - tenta.
- Será tratado como um tolo se submeter a esta situação - aponta.
- Reconheço que fui vencido.
O vencido foi o da prática. Com todas as artimanhas, o Demônio da Ilusão, Maya, tal qual em Bodhigaya em que Siddharta venceu. Desta vez, a Ilusão derrotou completamente a prática.
A mística zen na vida cotidiana é levar às últimas conseqüências a prática. Destruir a cada minuto, a cada respiração o Ego da ilusão. O Ego, em si, a própria Ilusão. Destruir completamente todas as justificativas para a existência do orgulho, da vaidade, da ganância, da preguiça. Pior do que a existência da Ilusão é justificá-la. E isso acontece quando o Ego se acha mais importante do que qualquer prática ascética. Ao invés de ver em sí a semente do mal, o Ego vê no outro. Por isso, o Ego é dúbio, dual. O Ego é uma grande droga. Ele se disfarça de Racionalismo, de Amor próprio, de Individualidade, de Meu, de Tenho Direitos, de Eu Mereço, de Eu Quero. Alguém que acredita na existência do Ego, olha sempre para o próprio umbigo, desconhecendo que no céu uma lua brilha. Iludidos, agem como fantasmas. Loucos, crêem em suas próprias loucuras. Continuam sonhando, com medo de acordarem.

terça-feira, agosto 08, 2006

Voto

Pode-se facilmente notar que sempre transformamos aquilo com o que convivemos. Nossas casas, famílias e amizades são bons exemplos disso.
Da mesma forma, quando entoamos um sutra, por exemplo Maka Hannya Haramita Shingyo, não só ele entra em nós, mas nós também nele entramos: Buda entra no ego e o ego entra em Buda.
Igualmente ocorre com as palavras usadas no cotidiano, quando as pronunciamos. Para que nossas palavras possam ser puras e benevolentes, devemos zelar por manter a mente pura.

E, para o silêncio, também não poderia ser diferente. Quando permanecemos em silêncio, nele penetramos.
Que ele se mantenha purificado graças à nossa prática.

domingo, julho 30, 2006

A questão da inocência

Nunca acreditei tanto nesta questão, que volto a escrever a respeito. Nada melhor do que a expontaneidade da criança. A isto chamamos de inocência. No caso de um "caminheiro da dharma", agir envolto nesta aura da inocência o torna realmente um ser da prática verdadeira. Costuma-se dizer que somos "crianças de Buda" - Hotoke no kodomo. Assim dizia o então abade do Mosteiro Zuioji, que tive a oportunidade de freqüentar. Penso que assumir a inocência na prática é tirar a máscara das representações mais diversas do convívio social. Não é este caso, mais a inocência da criança, que ainda não passou pela experiência da vida. Do praticante do caminho, a inocência é aquela assumida de forma consciente com o corpo e a mente totalmente desarmados. Desta forma, agimos como fosse a primeira vez, sem os karmas de vida passadas, quer dizer aqueles construídos no contexto histórico. Explico: com a mente livre, totalmente desapegada. Esta mente sem amarras possibilita o praticante ver o mundo não mais pelos olhos do ego, de um self independente, mas pelos olhos de Buda. Não é mais eu que vejo, mas as coisas se fizeram aparecer até mim. Não vejo mais como os olhos egoístas, que somente olham para aquilo que convêm. Os poetas também possuem a inocência no olhar, no cheirar, no paladar. Sentem todo o mundo de maneira livre. Sem condicionamento!
Aqueles que agem com a mente armada, assumindo uma personalidade, nada sabem a respeito do mundo além da "forma" e da "não forma". Continuam prisioneiros das manifestações fenomênicas e acreditando na sua existência. Com o olhar armado nada vêm. Com os ouvidos armados nada escutam. Com a língua armada nada sentem. Com a epiderme armada nada percebem. Ao mesmo tempo que todo o corpo encontra-se coberto, nada o atinge, em contrapartida nada percebe. Mantém-se armado porque temem perder a identidade. Temem que o ego seja atingido. Estes pensam que o corpo lhe pertence, assim como os quatro sentidos. Cinco sentidos, adicionando também a mente. Mas nada lhe pertence, inclusive a mente. Encontram-se estes totalmente deludidos.
Por isso, o praticante que merece usar este nome deve resgatar de dentro de sí a inocência. Nada ele tem a temer. A inocência é um grande trunfo de qualquer praticante. Foi com a inocência que existiu o poeta-monge Saigyo,Ryokan, Ikkyu, Bashô e Santoka. Mais recentemente, Sawaki Kodo. A inocência é a própria verdade. Ao contrário, o não inocente é malicioso, interesseiro e esperto. Assim, ainda que vivamos no mundo temporal, das paixões, do pensamento racional, por algum momento devemos praticar o caminho do monge - o desapego. Somente um inocente consegue desapegar-se.
Os apegados sofrem. Sofrem sobremaneira por causa da existência fenomênica de um ego, que por não ter a inocência, ficam suscetíveis a todas as manifestações da miséria humana. Estão apegados ao próprio egoísmo: de suas opiniões, de seu sofrimento, de seus caprichos, de sua visão estreita de mundo, de seus sonhos e pesadelos, de suas vaidades, de suas neuroses.
Estar com a inocência não é negar o mundo temporal, mas também acreditar no mundo mítico. Penso que o mítico é mais real do que o mundo em que vivemos. A própria inocência pode ser um mito, bem como a existência de monges e praticantes da sabedoria e desapego. Alguns acham que fazer zazen é estar ligado ao mito.Ao invés disso, preferem outras atividades menos ascéticas. Talvez seja mito acreditar na iluminação. Podemos pensar no mito como sendo algo irreal para os não praticantes e mito como real para aqueles que praticam. Se a primeira assertiva é negativa, a segunda nos parece correta, levando-se em consideração o praticante como incorporando o espírito da inocência, que se processa na condição real de existência. A colocação anterior é pura abstração, enquando a outra é experimental. Nesse caso, a inocência é mais autêntica do que as máscaras assumidas pelos não praticantes. Uns necessitam de máscaras, outros não.