sexta-feira, dezembro 29, 2006

Mondo de Saikawa Roshi

Ontem, ele me propôs o seguinte mondo:

"Meu pai é o Universo e minha mãe o Tempo".

Mais tarde, numa segunda colocação disse:

Ainda que me desloque, nunca saí do lugar.
Se é assim, indaguei, o que acontece seu eu visitar Paris.
- Nesse caso, não fui eu que visitei Paris, mas Paris veio até mim.
E completou, de maneira enfática: "Se não for assim, nada entendeu a respeito do zazen".

domingo, dezembro 24, 2006

Shosan – Retiro da Iluminação

– Respeitável Mestre, uma dúvida me atormenta:
fazemos o voto de não matar nenhum ser vivo.
Por favor, esclareça-me, então, como devo proceder em relação às pulgas de meu cão.

– A vida não é nascida. Assim, não pode ser extinta.

sábado, dezembro 23, 2006

Céu azul e mata verde

Ainda que insistamos que a mata seja verde, alguns insistem em vê-la de outra cor. O mesmo acontece com o céu, azul, numa tarde isenta de nuvens e tempestades. Podemos dizer que um círculo é redondo e um quadrado é quadrado. Ou ainda que as águas das montanhas correm em direção ao mar. Assim, as coisas são aquilo que são independente da vontade de forças superiores e externas. A passos lentos uma tartaruga caminha, os corvos voam e as serpentes rastejam. Ao retornar da China, o jovem Dogen foi consultado a respeito do entendimento. Perguntaram-lhe, o que tinha aprendido no continente. "Sei que os olhos ficam na horizontal e o nariz na vertical, que o sol nasce no oriente e se põe a ocidente, que após as chuvas as montanhas ficam mas próximas..." Nada mais do que isso era verdade, apenas a verdade, sem depender de agentes estranhos a esta própria realidade.
Isso requer entendimento e muita pouca fé. Aquilo que conduz à salvação é a própria Iluminação, que liberta a mente e destrói qualquer resquício da existência do Eu. Dito de outra forma, a Iluminação é o estado natural dos seres vivos que debatem-se mergulhados num poço escuro da delusão. Delusão esta construída a cada momento que o homem pensa a respeito de sí próprio, de maneira racional ou não. Toda vez que pensa, deixa de ser o homem natural para se tornar numa idéia totalmente conceitual. Não pensar, signfica também mante-se alerta a cada momento de nossas vidas. Pois cada momento é o momento novo, não determinado ou pré-determinado. Assim vivemos com o coração em atitude de agradecimento o instante, que não foi pensado, nas circunstâncias apresentadas no momento. Sem fazer avaliações, nem comparações.

Carta a um amigo 1

A pergunta que os neófitos querem resolver é a respeito do sentido da vida e o mundo que o circunda. Teria sido assim também quando o jovem príncipe Sidhartha, que após vencer as muralhas que o isolava do mundo, constatou a miséria que cercava a existência humana. Percebeu que a dor estava presente, gerando desta forma o sofrimento, e que era necessário conhecer as razões disso. Não podemos negar que ele realmente exista em circunstâncias específicas. Por isso, a primeira nobre verdade é a existência da dor. Ela pode ser criada pela nossa mente quando a nossa experiência depara-se com algumas situação. Pode ser de perda. Para uma criança, se alguma outra tomar-lhe o brinquedo pela primeira vez sentirá as dores do sofrimento. A mesma criança, mais tarde, se não ter os seus desejos satisfeitos, como um lanche da rede Mac Donalds também conhecerá o mesmo sentimento. Na adolescência, o jovem desejará ter roupas de grife, celular, tênis importado, carro, mochila, e uma mesada que nunca será suficiente. Na falta destes, haverá a dor e conseqüentemente o sofrimento. E na idade adulta quem não conseguir ingressar numa universidade de primeira linha, terá que se contentar com uma outra, de categoria inferior. Ao tentar vencer as etapas do vestibular e caso seja frustrado, vem a dor e novamente o sofrimento. Depois, não conseguir um bom emprego também causa dor. Por inúmeras vezes, tenta-se ingressar na carreira pública. Enquanto não se entrar, tem dor e sofrimento. Uma vez lá dentro, a dor surge toda vez que sua ânsia de galgar postos mais compensatórios não se realiza. A dor surge, inclusive, quando o colega conquista o mesmo que ele deseja. É a dor do ciúme, da inveja. Sente-se rebaixado e diz:"eu merecia mais do que ele". E em seguida, mais dor. Assim perdura pelo resto da vida...
Esta dor é gerada pelo apego a idéias preconcebidas e a coisas. Trata-se de uma mente condicionada pelas exigências sociais, condizentes com o sistema econômico em que vivemos. Penso que sempre o sofrimento estará nos espreitando, como uma sombra sinistra onde quer que vamos. Não obstante, se constato que a dor existe, tenho que descobrir a sua origem. Colocamos acima também esta segunda nobre verdade: a origem da dor. A não satisfação de nossos desejos é a origem da dor. Podem ser múltiplos os motivos para isso. Não acredito que exista alguém totalmente desapegada, que não é o caso da prática budista. Acabar totalmente com os nossos apegos seria temeroso. Ao meu entender, o segundo voto do Bodhisattva diz: os desejos são insaciáveis, faço o voto de extinguí-los, é uma forma de comprometermo-nos com aquilo que realmente almejamos. Entendo que o desejo ou paixões sejam manifestações emocionais momentâneos, sem muita consistência. Uma vez que um adulto adquire um carro novo, aquele desejo foi satisfeito mas em sua mente outros estarão se formando. Quando jovem estudante de História na PUCSP desejava comprar todos os livros citados e sugeridos. Invejava os professores que tinham uma elevada bagagem cultural, uma erudição sem igual. Queria ser como eles e para isso, precisava dos livros. Quanto mais, mais queria e formei um acervo de mais de cem livros de história. Ainda assim, queria adquirir. O sofrimento era grande. Nesta época o meu sofrimento tinha por origem a vaidade intelectual não satisfeita.
Reconhecer que algumas necessidades não passam de paixões é o ingresso no Portal da Iluminação. E assim, podemos dar cabo nesta forma de sofrimento.
Existe uma clara diferença entre condições necessárias para a existência e desejos. Entre as condições falamos da educação, da saúde, moradia, cultura. Resumindo estes, três são as necessidades mínimas para a existência: alimento, roupas e moradia. Não se tratam estes de desejos. Para um médico ter um telefone celular não é desejo, mas instrumento de trabalho. No meu caso, descartei a muito tempo esta comodidade. Alguns podem achar que ter um computador seja um desejo, enquanto outros uma necessidade de trabalho. Para mim o computador é uma necessidade de expressão.
Entendendo desta maneira, o desejo é a causa maior de nossos sofrimentos. Não seria o contrário. Mas vivemos num mundo de desejos, constamente veiculados pela imprensa, pela propaganda, pelas relações sociais. Ser escravo dos desejos é pior do que ter desejos.
Não que seja um placebo para isso, mas o zazen é uma maneira de amenizar o aparecimento dos fantasmas de nossa mente. Posso dizer, dos desejos. No zazen tenho a capacidade de perceber melhor o que seja a verdade e o desejo. Por isso fazemos zazen. Como uma poça de lama em noite de lua cheia de outono, se o espelho d'água não for perturbada, reflete-se inteiramente o universo. Reflete a lua, os postes, os carros, a bota das pessoas etc. Assim é a nossa mente: reflete apenas. Uma vez que a água da lama é incomodada pela presença de uma pisada, a água se turva e trepida sem que o reflexo realmente possa refletir o mundo real. A mente em estado de zazen é como a água calma de uma poca de lama.

sexta-feira, dezembro 22, 2006

Shosan - Sesshin da Iluminação

Assim pertuntei ao Superior Dosho Saikawa ao final do Sesshin da Iluminação.

Honorável Dedo do Dharma, mas por quê? Assim ouvi que todos os seres vivos de todo o Universo possuem a natureza de Buda. Os peixes nadam, as aves voam e o sol brilha. Entretanto, soménte o ser humano logra atingir a Iluminação.

- É porque o ser humano é deludido.


Obs. convidos os outros que participaram do shosan a colocarem as suas perguntas/respostas.

Distribuindo branquinha

Surgiu a idéia de maneira inesperada, contrário a todos os paradigmas até então desenvolvidos nas atividades sociais. Neste final de ano, poderíamos exercitar o nosso entendimento de uma forma especial. Claro, alguns entenderam a mensagem mas não ousaram colocá-la em prática. Pois bem, o que queríamos era distribuir pelas ruas da Paulicéia algumas garrafas de cachaça para os desiludidos, catadores de papel, de lixo ou simplesmente ociosos da vida. Levando em consideração de que aquilo que bom para mim talvez seja diferente para o outro ou que a compaixão é a experiência de sintonizar o coração alheio, num universo fenomênico em que existe a dualidade (do eu e do outro) o que na verdade do dharma tal dualidade é criação unicamente de minha ignorância e egoísmo, procuramos vivenciar nós mesmos sendo o outro. Deixe-me colocar de um jeito mais simplês: sem discriminação, aquilo que agradava ao outro poderia ser priorizado numa ação que ultrapassasse as idéias, solidificadas em ações concretas.
A respeito deste outro, posso tecer considerações objetivas e devidamente experimentadas através da observação. Tempos passados, junto com um companheiro de prática budista resolvemos participar de um trabalho social, que reunia militantes da Igreja Católica. Era com os moradores de rua. Estes moradores buscavam alimento, lazer e banho nas casas mantidas por aquela entidade religiosa e conveniadas a prefeitura. Mas o que nos interessa aconteceu no depoimento de uma voluntária ligada a um grupo que cuidadava dos moradores da região central, nas proximidades da Praça da Sé. Disse ela: "Nosso trabalho é frustrante e muitas vezes sinto que nosso trabalho é em vão". Com voz lenta e angustiada contou o seu drama. Conforme nos relatou, ela retirou da rua um homem a fim de reintegrá-lo na sociedade, inclusive dando-lhe roupas novas, banho, alimento e corte de cabelo e barba. Entretanto, dois dias se passaram e ela novamente o viu nas ruas, usando os andrajos e alimentando-se de uma garrafa de cachaça. Ao ouvir este relato, no meu depoimento com energia a critiquei. Para mim, ela não tinha direito de planejar o futuro de ninguém, nem o de dizer aquilo que era melhor para o outro, ignorando totalmente a história de vida daquele. Cheguei a pensar: " que atitude egoísta são os dos que realizam trabalhos sociais visando apenas seu próprio prazer?" Vem a calhar o que ouvi um dia o monge amigo me aconselhar. "Com os injeitados temos apenas que aprender e não ensinar-lhes, pois a nossa interferência incomoda-os, assim devemos pedir desculpas antes de dirigir-lhe a palavra". Nesse caso, a nossa insolência de detentores da verdade nos torna profundamente egoístas.
Não apenas este caso verifiquei. Num outro, no caminho de casa, à noite quando o frio do inverno era assustadoramente aterrador. Certa mulher bem intensionada, uma temente de deus, com a capa negra do livro sagrado que levava nas mãos, tiritava de frio enquanto seus lábios pronunciavam um sermão dígno dos pastores mais fervorosos. Do outro lado, um mendigo tinha sido acordado de seus sonhos e experimentado uma situação bizarra. Seus olhos ofuscados por ter sido abruptamente acordado, lacrimejavam. Destarte, aquela mulher pronunciava a beleza da graça divina e o valor do arrependimento. Mas em nenhum momento, parece-me, o sentimento daquele homem fora levado em consideração. Naquele momento não era de sermão que ele necessitava - o mais maravilhoso que fosse - mas de ações concretas. Pensei, ele necessita de um copo de café forte e quente, de um cobertor, de um sono que não fosse incomodado.
Não que os exemplos citados servissem de justificativas pela ação concretizada nesta noite de 21 de dezembro de 2006. Apenas a realizamos, eu e o amigo Seigen.
Levávamos meia dúzia de garrafas de cachaça e dois pacotes de biscoitos. Saímos da Liberdade e fomos para a Bela Vista. Na rua Rui Barbosa, nas sombras vislumbramos dois homens e uma mulher em torno de sacos de lixos. Eram muitos os sacos de restos de comida de um restaurante próximo. Chegamos perto, sem levantar suspeitas e ofereci o saco de biscoito. Ele agradeceu. "Amigo, você gosta de branquinha", consultou Seigen. A resposta foi afirmativa. Talvez ele nem acreditasse, mas ganhou sua garrafa. Estupefato, escancarou um sorriso de dentes cariados e feliz declarou "puxa, fiz a noite!". Na mesma Rui Barbosa mais dois mendigos, que numa assembléia, talvez confabulassem suas agruras e amenidades, ganharam as suas porções. Chegamos finalmente na Praça Roosevelt, mas o único mendigo que encontramos, ao ser consultado disse que não apreciava o bebida. Deixamos para lá e continuamos a via sacra. Na Praça da República, nada de mendigos. De um lado para o outro perambulavam os hippies saudosistas vendendo suas quinquilharias. Mas quando entramos na rua Barão de Itapetininga, quase 22hs, as lojas cerravam suas portas. Chegamos a tempo do catador de papelão recolher o que restava no chão. Ao receber a sua garrafa achou ânimo para ironizar "bem, penso que é natal". Um mendigo solitário que sentava-se aos fundos da escadaria do Teatro Municipal ganhou mais uma garrafa e um outro, na esquina do Viaduto do Chá, também foi premiado. Assim terminamos a nossa distribuição de garrafas de cachaça.
Esta foi a experiência mais calorosa realizada neste ano. Tinha planejado anteriormente, que além do Seigen sensibilizamos outros companheiros. Mas achei no Seigen aquele que levou mais a sério o propósito. Como ele viajava naquela noite para o Rio, por pouco a distribuição seria frustrada. Agradeço a ele, pois quando lembrei-o do nosso plano ele próprio fez questão de realizá-lo antes da sua partida.

terça-feira, dezembro 19, 2006

Sincronia

Quinto dia de Sesshin. O dia estava escuro, o céu cinza de nuvens apressadas. Estávamos imóveis no zendô desde as seis horas da manhã. Ao som da minha respiração somávasse o som das máquinas na rua São Joaquim, o alarido das crianças que brincavam na calçada ao lado do templo, um Bem-te-vi e alguns Pardais. A imobilidade na sala de meditação foi então quebrada de súbito, pelo inesperado tocar do pequeno "sino" utilizado pelo Inô, mas agora nas mãos do professor Saikawa. Só ele estava de pé, fez três prostrações em frente à imagem do Buda Monju e começou a entoar sozinho um sutra. Neste momento, as nuvens silenciosamente móveis sobre nossas cabeças deixaram uma brecha no céu que iluminou todo a sala. Logo depois Saikawa Roshi falou-nos sobre delusão.

Nem dentro, nem fora

No Shodoka, há uma estrofe que diz:

"Temos de viver muitas vezes
e muitas vezes morrer.
Vida e morte se sucedem
continuamente na eternidade"

Zazen é igual à vida.
Durante o sesshin, morremos e nascemos inúmeras vezes, ao longo dos sete dias: a cada madrugada sonolenta, a cada impulso de abandonar o zafu, a cada pensamento prazeroso que nos arrasta para longe da sala de meditação.
Morremos de dor nas pernas, morremos de raiva quando somos corrigidos, morremos de sono, às vezes.
Mas, a cada morte de nosso ego, simultaneamente há um renascimento venturoso na morada divina do aqui-e-agora.
Então já não há as minhas pernas, o meu sono, a dor nas minhas costas, mas o universo todo que renasce no pássaro pousado na janela do templo, no sorriso encorajador do monge ao seu lado, no perfume do arroz que vem das tigelas, na vida que se agita no sobe e desce da rua São Joaquim.
Realizar o sesshin é, antes de tudo, abandonar essa vida de ilusões e renascer nas três jóias, no Buda, no Dharma e na Sangha: Buda é a mente, o Dharma é o próprio Buda, a Sangha é o Dharma presente.

Com respeito, agradeço à Sangha.
Que esse renascimento venturoso se espalhe por todas as direções, em benefício de todos os seres.

Zazen é igual à vida.


sábado, dezembro 16, 2006

Após o vendaval

Mais do que o esperado, muitos são os sobreviventes, poucos os mortos. Durante seis dias entre 28 a 32 pessoas submeteram-se a um treinamento do corpo e da mente, repetindo o mesmo processo que culminou na Iluminação do príncipe Sidhartha. Estamos na Rua São Joaquim, uma quadra e meia a partir da estação de metrô homônimo. Ainda está escuro quando os primeiros começam a chegar. Possivelmente o primeiro deles seja o monge inô, que cruzou os bairros da Lapa, Barra Funda, Santa Cecília, Vila Buarque, Consolação, Bela Vista até chegar na Liberdade. Ele vem montando a sua bicicleta novinha, que resolveu usar no último dia do Sesshin da Iluminação. Templo Busshinji se avista com seu portal, assim que descemos a São Joaquim. Temos alunos de várias origens: Florianópolis, Curitiba, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraíba e um de Barcelona, Espanha. Os sotaques são muitos, que se ouvem nos intervalos das sessões de zazen. Bem, está proibido conversar. Desta vez, procuramos relaxar um pouco.
Assim que se penetra na Sala de Buda, que usamos como dojo durante este sesshin, duas fileiras de tatamis estendem-se pelo espaço em forma de L. No encontro destas destas fileiras está instalado o altar do Bodhisattva Manjusli. Perto dele, o lugar do roshi. De olhar calmo e voz branda, mergulhado em sua concentração mantém os olhos fechados. Mas não dorme. Com os olhos fechados ele sabe o que acontece em cada ponto da sala, mesmo às suas costas. Cada invasão naquele ambiente sagrado, de algum aluno atrasado ele reconhece. O chão de madeira estrala ao peso dos corpos e alguém menos avisado ainda que procure disfarçar denuncia a sua presença.
Pela rua São Joaquim às vezes o barulho dos carros é imenso. Mas neste sesshin, ninguém reclamou. Aliás, só tivemos um abandono no primeiro dia: "este local é muito barulhento e poluído", justificou a atitude. A respeito pensei nas horas vagas, será aquela rua realmente barulhenta. Sentado em zazen, quando me dava conta do barulho, então o barulho surgia. Nos momentos das refeições, tinha a impressão que havia barulho, mas a atenção deveria se dirigir a algo mais importante: o movimento das mãos ao manusear o hashi, a colher, o setsu, as tijelas (haviam três). Para cada utensilho um tipo de alimento: o arroz, a sopa, a verdura, a converva, a sobremesa. Ninguém se atrasava, ninguém se adiantava. Todos começavam juntos e juntos terminavam. Senti uma saudade do sodo do Mosteiro Zuioji, onde, pela primeira vez, exercitei minhas habilidades manuais e atenção permanente. Por isso, nenhum barulho, caso existisse não incomodaria. Uma vez um mestre disse que o barulho desaparece quando ele vem e se retira normalmente. Entendi que tínhamos que aceitar o barulho em nosso entendimento, sem relutância, que ele desapareceria em seguida sem deixar marcas.
Durante o treinamento talvez o momento mais difícil seja o do relacimento humano. Em sua miséria, o ser humano pensa e problematiza a vida: eu e o outro, a vaidade, a raiva, a intolerância, o orgulho, a soberba e outros adjetivos piores do que os mencionados. No sesshin estas ervas daninhas da mente surgem sem moderação para que a pessoa se dê conta de sua delusão. Mas por outro lado, os mansos de coração sofrem menos as dores da mente e do corpo. Envergando seus mantos negros nada os atingem, pois mantém-se em permanente atenção e sentam-se em zazen sem hesitação. Havia monges jovens de menos de trinta anos, outros mais velhos, depois dos setenta. Sentados, nada os distinguia.
Ao final do sesshin, alguma coisa aqueles jovens e velhos monges e leigos, enfim praticantes do dharma, tinham aprendido. Não posso dizer dos outros, mas cada vez a minha convicção de que o tempo é fluido o suficiente para não ser vivido integralmente se torna patente. Assim, se a atenção não estiver presente a cada instante de nossa vida perderemos o trem da história. Penso que poderemos priorizar mais o tempo da atenção e menos o tempo inútil das amenidades. Para isso, não existe lugar para egoísmos e outros venenos provocados pela ignorância.
Por tudo, reverenciemos a Buda.

Namo Tassa Bhagavato Arahato Samma Sambuddhassa

Homenageio a Ele, ao Afortunado, ao Consumado, ao Perfeitamente Iluminado.

segunda-feira, dezembro 11, 2006

Templo do barulho

Sabedor das dificuldades enfrentadas pelos os que submetem-se a uma prática intensiva de destruição de ego, durante os sete dias de retiro - a que chamamos sesshin - o primeiro dia acusou uma baixa. Tão rápido quanto as poucas horas, depois de seu início. Estamos em pleno Sesshin da Iluminação no Templo Busshinji, aquele da rua São Joaquim. Aproximadamente dois milênios e meio o príncipe Sidhartha também enfrentou situação semelhante. Debaixo da árvore de Bodhi, enfrentou um a um os obstáculos produzidos pela própria mente. E um a um foi vencendo as filhas sensuais de Mara, os demônios de língua de fogo, os animais fantásticos, os fantasmas e toda espécie de praga. O próprio Mara surgiu em sua frente, com a cara do outro, com a cara do próprio Sidhartha. Mas em nenhum momento Sidhartha ofereceu resistência, nem os alimentou em sua fome de ilusão. Deixou que viesse, deixou que se fossem. Nada daquilo tinha consistência: totalmente vazios.
Da mesma forma que Sidhartha, no mês em que se comemora a Iluminação, os alunos de zen do mundo todo, seguindo as instruções de seus mestres realizam caminho semelhante. Nada é fácil, bem contrário. As pernas doem após 40 minutos em lótus, ou semi-lótus ou simplesmente sentado com as pernas cruzadas. Mais 10 minutos de meditação andando (kinnhin) para relaxar, sem perder a concentração. Mais 10 minutos para usar o banheiro ou tomar água, e inicia-se de novo um novo ciclo de zazen. Tudo igualzinho como era antes. Isso se repete por quase oito horas. E na mesma posição sentada, os alunos recebem a ração da manhã e mais tarde o almoço. Daquela forma participam das cerimônias da manhã (Choka), do antes do almoço (Nichu Fugin) e da tarde (Banka). Quando é a hora do samu (limpeza), de menos de 30 minutos, pode ser pensado como o momento de relaxamento. Nada mais do que isso. Não se tem tempo para conversar, pois conversar é expressamente probido. É proibido fazer corpo mole na hora do samu: descansar enquanto outros trabalham ou fingir que trabalha enquanto outros fazem o contrário. A quem podemos enganar? A sí próprio, somente a si!
Nesta baixa, algum pensamento ficou. Disse a pessoa que abandonou a prática, antes mesmo dela começar, que o local em que localizava-se o templo era muito barulhento. Bem, até então eu próprio não tinha percebido isso. Barulho? Claro, havia. Mas não sabia como o barulho perturbava. Na rua São Joaquim o trânsito de mão única flui em direção à Avenida Liberdade. Por isso, algumas vezes os carros disparam suas buzinas. Não apenas isso, os pneus rangem, os escapamentos estrondam. Procurei amenizar e rebati: "o barulho pode diminuir em determinados horários". Entretanto, a resposta foi rápida: "barulho e poluição, por isso não quero mais participar deste retiro". Não insisti mais e aceitei seus motivos para a desistência.
Foi por causa do barulho que as pessoas não meditam? Fiquei imensamente desapontado. Poderia ouvir outras razões como "o tempo de meditação é muito longo" ou "não estou preparado para um treinamento tão rigoroso". Seria mais sensato. Não, não era o caso. O caso era o barulho. Um barulho que tinha se transformado em Mara. Ouvi falar de pessoas que procuram o silêncio das montanhas, seu ar puro, a paisamente bela, para meditar. É válido, não nego. Mas me parece algo egoísta. Meditar nas montanhas para eu estar bem. Alguns querem ouvir o canto dos passarinhos ou uma melodia agradável.
Quando estou preocupado com o barulho de fora do templo, do qual me encontro dentro, crio a dualidade do dentro e fora. Será que existe o dentro e o fora? Somente na mente dos condicionados a tal idéia. Apesar do barulho da Rua São Joaquim, nunca me preocupei com ele. Posso dizer que o barulho e eu sempre fomos um, sem eu saber. Mas agora que alguém disse que o barulho perturbava, me despertou a ilusão da existência do barulho e da existência de um eu que o ouve. Felizmente como o zazen tornou-se meu alimento, meu oxigênio, esqueço-me do barulho, sem que ele realmente me perturbe.
A lição que ficou é de que um barulho apenas pode ser tão terrível como o pior dos pesadelos. Em proporção igual, quanto mais ele me perturba, maior é o meu ego. Infelizmente vivemos num mundo com muito barulho, ar poluído e uma infinidade de outros obstáculos. Assim, se o barulho for suficientemente significativo para impedir a prática de um estudante do budismo, o que será de todas as outras ilusões como vaidade, raiva, intolerância, covardia, egoísmo e ignorância. Isso significa que antes de iniciar a corrida desisti de correr. Antes de responsabilizar o outro - o barulho - quem sabe, deveríamos assumir a nossa incapacidade de lidar com o mundo à nossa volta. Posto de outra forma, o mundo que nos cerca e nós próprios somos a mesma coisa. Percebi isso em minha própria vivência: moro próximo à Escola de Samba Vai Vai. Nas semanas que antecedem o carnaval há ensaios todos os finais de semana, mas nunca isso foi problema para mim. Não que os meus ouvidos tivessem se acostumado com o barulho dos requipes e surdos, mas a minha concentração se direcionava a outros pontos mais localizados. Se alguém não tivesse me dito, não saberia do barulho da escola de samba. Não saberia também do barulho da Rua São Joaquim. Prefiro esquecer que alguém me disse, um dia, que o Templo Busshinji ficava num lugar barulhento. Ou pelo contrário, ainda bem que tem barulho. Não apenas lá, mas igualmente nas proximidades do aeroporto, da Radial Leste, das construções de prédios, dos estádios de futebol, das igrejas evangélicas. Pois o mundo é barulhento. Mas se isso fosse motivo para atrapalhar a minha prática, já teria desistido. Como não pretendo negar o mundo da maneira como se apresenta, então o melhor é adaptar a minha prática com as condições dele: faço zazen no barulho. E haja visto que alguns adoram colocar fones de ouvido enquanto trabalham. Dizem estes também que conseguem concentrar-se mais no serviço com barulho nos ouvidos. Que mundo estranho que vivemos ou será apenas o egoísmo das pessoas, que não param de olhar fixamente para o próprio umbigo.