
Sou negro, sou pastor, nasci por aí, não tenho documento, nem raça, nem casta, sou um cachorro preto. Uma orelha cortada sem ponta, por baixo uma ferida aberta. Sou pirata. A ponta de uma pata é branca. A peste me ataca, deixando o pelo ralo em duas partes do meu corpo. (O que me cura?) Sou vira-latas, vivo num buraco da terra. Estou vivo, e se você for fazer aquela trilha da montanha eu te acompanho, sou forte, sou pastor, sou um cão negro. Sou sua sombra neste caminho sob o sol, nada mais me interessa, te acompanho no caminho estreito, curvo e íngreme. Me distancio e lá na frente, perto daquela nuvem, faço um cocô amarelo, sou cão, abano o rabo e deixo pendurada a língua no canto da boca. Um espinho penetrando lento a carne, uma dor me ataca no mais fundo do ouvido, balanço a cabeça violentamente, as orelhas batem e fazem um som característico (só assim posso pensar na cura). Me jogo no chão, solto ganidos, me arrasto com a cabeça a se esconder no capim, até passar, até me deixar, até voltar. Mas agora outra vez sou o cão negro. Estou pronto, estou alerta, sou todo atenção neste caminho. Não precisa passar a mão na minha cabeça, afeto para mim é apenas a nossa presença móvel neste fio de terra e pedras. Sou sombra e assim não vejo diferença entre eu e você. Quando você pensar em me acariciar já sumi no caminho à sua volta. Sou sombra de um ou de muitos, não importa, sou pastor, reuno, reuno a matilha nessa trilha sobre as montanhas. Assim sou feliz, sou cão, cão sem dono.
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"Pelé" vive na Chapada, vila de uma só rua rodeada por uma bela serra, próximo à Ouro Preto.
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