terça-feira, outubro 20, 2009


Nada me tem, nem sou


Sou negro, sou pastor, nasci por aí, não tenho documento, nem raça, nem casta, sou um cachorro preto. Uma orelha cortada sem ponta, por baixo uma ferida aberta. Sou pirata. A ponta de uma pata é branca. A peste me ataca, deixando o pelo ralo em duas partes do meu corpo. (O que me cura?) Sou vira-latas, vivo num buraco da terra. Estou vivo, e se você for fazer aquela trilha da montanha eu te acompanho, sou forte, sou pastor, sou um cão negro. Sou sua sombra neste caminho sob o sol, nada mais me interessa, te acompanho no caminho estreito, curvo e íngreme. Me distancio e lá na frente, perto daquela nuvem, faço um cocô amarelo, sou cão, abano o rabo e deixo pendurada a língua no canto da boca. Um espinho penetrando lento a carne, uma dor me ataca no mais fundo do ouvido, balanço a cabeça violentamente, as orelhas batem e fazem um som característico (só assim posso pensar na cura). Me jogo no chão, solto ganidos, me arrasto com a cabeça a se esconder no capim, até passar, até me deixar, até voltar. Mas agora outra vez sou o cão negro. Estou pronto, estou alerta, sou todo atenção neste caminho. Não precisa passar a mão na minha cabeça, afeto para mim é apenas a nossa presença móvel neste fio de terra e pedras. Sou sombra e assim não vejo diferença entre eu e você. Quando você pensar em me acariciar já sumi no caminho à sua volta. Sou sombra de um ou de muitos, não importa, sou pastor, reuno, reuno a matilha nessa trilha sobre as montanhas. Assim sou feliz, sou cão, cão sem dono.

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"Pelé" vive na Chapada, vila de uma só rua rodeada por uma bela serra, próximo à Ouro Preto.

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