quinta-feira, junho 29, 2006

A miséria do eu

Algumas palavras produzidas culturalmente e, desta forma, criando raízes como ervas daninhas na mente, contribuem para o condicionamento de nossa atuação no mundo. Uma destas, diz respeito a nossa pessoa, ou seja eu. Primeiro pessoa do singular.

Eu faço
Eu sinto
Eu penso
Eu conquisto, e assim por diante.

Mas toda vez que faço, tenho que arcar com as conseqüências. Assim sendo, tudo que faço acaba repercutindo em todas as dez direções. Como uma onda vibratória, a tudo acaba afetando, de maneira positiva ou não.
Quando eu sinto, talvez raiva, talvez compaixão, da mesma maneira me coloco como ser do mundo. Existindo a raiva discrimino a minha relação com o todo. Mais do que nunca o eu sobressai-se, sendo a raiva um instrumento para esta projeção. Maior a raiva, maior é o ego. Posso dizer também, estou bravo. Estado patológico de desequilíbrio emocional, um ego ferido que necessita produzir a contraparte. Por isso, o eu bravo precisa descarregar sua sandice no outro que causou-lhe tal arrebatamento. Assim, o ego vai se inflando na medida em que as emoções apaixonadas dominam o sistema nervoso. Outrossim, a respeito da compaixão, penso que a colocação não seria do tipo "eu sinto compaixão..." Melhor posto, a compaixão deve estar isenta de um eu. Se pratica atos compassivos quando o eu não pensa, ou seja o eu é vazio.
Colocando desta forma, um eu vazio, não sente raiva e também não sofre.
O sofrimento, conhecido também por dukkha, é gerado pela existência do eu. Um eu que realmente não existe, mas apenas um fantasma nascido de nossas ilusões. Quando o eu pensa, cria projeções, que não realizadas geram sofrimento. Se o eu pretende conquistar, uma vez que vê seus planos irem água abaixo, então o eu sofre. Maior o sofrimento, maior é o eu. Por isso, para o ego aparecer em toda a plenitude precisa sofrer. Quer dizer: eu sofro, na mesma medida que eu conquisto. Sofro quando não levo vantagem alguma nas minhas relações com o mundo.
Ao se falar no eu, o instante seguinte é o pronome possessivo Meu e Minha.
Minha casa
Meu carro
Meus filhos
Minha esposa
Meu emprego
Meu dinheiro

Se minha casa pegar fogo, sofro.
Se meu carro bater, sofro.
Se meus filhos se forem, sofro.
Se meu emprego eu perder, sofro.
Se meu dinheiro faltar, sofro.

Tudo aquilo que torna o ego o centro do mundo, sendo o resto um apêndice daquele, então o sofrimento continuará existindo. O sofrimento não existe se não existir um eu fortalecido. Assim como os atos de autocomiseração tornam o eu uma enorme fonte de profundo egoísmo.
Mas destruir o eu gera controvérsia, porque ninguém quer se desfazer dele. Basta um eu ferido para todo exercício de sua anulação se frustar!

quarta-feira, junho 28, 2006

Cerimônia do Chá I

Como estamos reintroduzindo a Cerimônia do Chá no Busshinji, que deverá acontecer uma vez por mês aos sábados depois do zazen, acho que será interessante publicar aqui textos sobre a cerimônia, originais da Reportagem publicada na revista "Caminho Zen", vol. 8, nº 1-2003, pgs. 4-8, publicada pela Sotoshu Shumucho

Zen o chá

Na China durante o período Tang, o mestre Chan (Zen) Zhaozou (778-897) criou um koan ou enigma sobre os Três Drinques de Chá. E desde então, a relação entre o Budismo Zen e o chá tem sido profunda. Budistas - especialmente sacerdotes Zen - tiveram papéis importantes na introdução do costume de se beber chá no Japão: Saicho (767-822), Kukai (774-835), Eisai (1141-1215) e Bennen (1202-1280). O costume de beber chá foi organizado na cerimônia do chá pelo monge Zen Ikkyu (1394-1481) e por Murata Shuko (1422-1502), um discípulo de Ikkyu, que certificou-se que havia atingido a iluminação. Murata disse que, desde que a cerimônia do chá nasceu do Budismo Zen, os seus estudantes devem se basear na etiqueta Zen. Também disse que a cerimônia do chá incorpora o Budismo e que estudar a cerimônia do chá é uma maneira de assimilar o Budismo.[Incidentalmente uma cerimônia diferente do comum chamado sencha foi introduzida no Japão no início do século 17 por um monge Zen Chinês chamado Yinyuan.].


Por isso, muito do que hoje se pensa que é a cultura japonesa, tem suas raízes espirituais no Zen e se origina do grande florescer cultural dos séculos 15 e 16.

Vazio

Onde houver um problema, estará lá, ocupando o mesmo tempo e espaço, a solução. Portanto, não existe problema, não existe solução.

terça-feira, junho 27, 2006

Banheiro do templo x vestiário de futebol.

Há alguns anos durante um sesshin, num período de intervalo, um grupo de praticantes encontrava-se no banheiro, entre eles, eu. Automaticamente o clima tornou-se descontraído, todo mundo falando alto, fazendo brincadeiras e gerando altas gargalhadas. Era como se livres dos momentos de disciplinada interiorização precisácemos voltar ao nosso familiar estado de exacerbação. No meio daquele tumultuado ambiente, que mais parecia um vestiário de futebol, e em meio à minha própria exaltação interior, algo soou-me estranho. Algo estava fora de lugar. Senti um mal-estar e de repente passou pela minha mente uma suspeita. Imediatamente calei-me e sai do banheiro confirmando o que suspeitara: por todo o salão ecoava o alarido eufórico. Em meio ao barulho Sokan Koichi Mioshi tentava travar uma conversa com algumas pessoas. Meu olhar cruzou com o de uma monja que acompanhava a conversa do Mestre. Senti-me profundamente envergonhado. Sem que uma palavra fosse proferida, reconheci meu erro e fiz uma reverência desculpando-me à ela, que respondeu ao meu ato com outra reverência. Conscientizei-me que era preciso estar atento para que cada coisa estivesse em seu lugar, em benefício da harmonia. A atitude correta no lugar correto. Além dos momentos em que sentamos, o zazen continua nas demais dependências do templo e se estende para fora de seus muros.

Águas de minha mente

Num poema de Dogen Zenji, ele diz o seguinte:

Sem impurezas
As águas da mente
Mesmo que as ondas quebrem
Continuam a refletir.

Muitas vezes Miyoshi Roshi fazia a respeito uma alusão, dizendo que a mente contém impurezas que não podiam ser eliminadas em pouco tempo. Destas impurezas, três são as piores: apego, ignorância e raiva. Chamados também por "Três Venenos", estes eram o sedimento de toda a nossa ilusão. Para ser mais objetivo, temos que reconhecer a existência destas ervas daninhas da mente e, na medida do possível, conviver com eles. O reconhecimento se dá através do zazen. É através do zazen que conseguimos abaixar a sujidade da água de nossa mente. Não quer dizer que a mente se tornou limpa, só fazendo zazen. Não se dá desta forma. Acontece que quando fazemos zazen as nossas impurezas continuam a existir, entretanto temos a capacidade de acalmar os nossos sentidos. Se agirmos conforme os nossos ânimos, a nossa raiva, então nos tornaremos feras, atacando todos ensandecidos pela febre da paixão.
Dizia Miyoshi Roshi que a mente assemelhava-se a uma lagoa num noite tranqüila de outono. A lua imensa, redonda, refletia-se no espelho d'água. Eis que alguém atira uma pedra. A turbulência da água forma imagens distorcidas e a lua surge refletida em total irrealidade. Vista desta forma, esta lua é a mente apegada aos sentidos dos três venenos. Não se trata mais da lua verdadeira. É uma mente perturbada, que enxerga tudo conforme os caprichos da ilusão. Assim sendo, ao se sentar em zazen a mente perturbada, que se assemelha a lagoa da pedra atirada, vai retornando ao seu estado anterior, de tranqüilidade. Existindo a atenção do zazen, os três venenos também perdem força e tudo se torna mais claro.
Portanto, admitamos os três venenos e a nossa mente perturbada. Sabendo disso, podemos identificar imediatamente quando os venenos surgem em nossa mente. A raiva surge de repente, devido o meu apego e minha ignorância. Existe apego porque há raiva e ignorância. E a ignorância é conseqüência de minha raiva e apego. Não obstante, quando eles surgem não consigo eliminá-los de vez, pelo contrário, sei de sua existência e não me importo com isso. Talvez até mesmo alimento-os em minha perturbação. Se trata de um equívoco. Talvez o mais correto seja não me importar inclusive com o seu surgimento: não faça que cresça, nem que diminua. Deixe como está, como no zazen. Assim ele se desfaz em menor tempo.
Como ilustração vale citar uma experiência vivenciada, que me causou grande mal estar. Quando da defesa de dissertação em História, uma colega conseguiu obter em sua defesa a nota 10 com distinção. A minha avaliação não tinha sido tão boa assim. Durante os três anos, estive ao lado daquela colega, freqüentando os mesmos cursos, participando juntos de congressos e grupos de estudos. Na verdade, eu era um pouco mais disciplinado que ela. E, de minha parte, a criticava por isso. Mas no resultado final, ela recebia os louros da vitória. Fiquei mal. Sabia que em minha mente existia os sintomas patológicos de uma ciumeira incontrolável. Era isso mesmo. O cíume me corroía. Tinha consciência de sua existência e queria extirpá-lo de minha mente sem, no entanto, almejar sucesso. Passei quase um mês desta forma, quando aquele sintoma foi desaparecendo. Sem nenhuma culpa, assumi meu corpo da prática.

segunda-feira, junho 26, 2006

A transmissão e a dificuldade da transmissão

No Morro dos Abutres Buda tinha diante uma multidão, quando, de súbito, levantou um galho com uma flor. Apenas o sorriso de Mahakasyapa iluminou-se, sem que os outros nada entendessem. Nenhuma palavra. Um gesto apenas. Nesse momento, o Honorável Mahakasyapa recebeu a transmissão do Dharma.
Quando Eihei Dogen esteve treinando em Tenzo-zan, na China Song, o mestre Nyojo corrigia seus alunos com rispidez. Não tolerava que eles adormecessem durante o zazen. Se isso acontecesse, se toda a atenção se perdesse, Nyojo não media palavras e ameaçava com todas as formas de agressões verbais e físicas. Foi quando um grupo de monges resolveu pedir que o mestre fosse mais afetuoso e tolerante com eles. Em lágrimas, Nyojo explicou a sua postura: "quero que vocês entendam e por isso, ajo desta maneira". Havia no mestre chinês uma profunda compaixão.
A relação entre o mestre e o discípulo é enérgica, sem a qual a transmissão não se realiza. Meu mestre Miyoshi foi uma incógnita em minha vida. Exigia de mim mais do que dos outros. Em outras palavras, exigia de determinados discípulos mais do que de outros. E cheguei a seguinte conclusão: a dureza para uns era compaixão, a docilidade para os outros era compaixão. Para uns, a dureza formava o caráter e criava resistência para a prática. Para outros, a docilidade significava uma profunda compaixão devido sua debilidade.
Quando da transmissão do dharma, disse-me que teria que copiar toda a linhagem com pincel em tinta carvão. Tarefa difícil, mas a executei. Passei o Ano Novo copiando sem errar a linhagem toda. E da viagem a ser realizada ao Japão, tinha arrumado um companheiro que me levaria junto ao mosteiro. Ao saber disso, desencorajou o rapaz e disse: "quero que ele vá sozinho". Nunca tinha viajado só ao Japão, muito menos sabia como usar os transportes internos. Hoje entendo a sua preocupação. Ele queria que eu criasse resistência para andar com as próprias pernas, sem necessitar muletas. Queria que nem mais dependesse dele.
Li uma vez uma colocação oportuna do Dalai Lama. Dizia ele que as pessoas não necessitavam se tornar budistas para viver em paz. Aliás, "o budismo é uma prática difícil, para poucos". O entusiasmo pelo budismo acaba quando o amor próprio suplanta o amor pelo todo.
Destruir o ego é a principal prática do budismo. Não apenas o ego da exaltação, mas também o da comiseração. O sofrimento é gerado pelo karma, e também pela existência do ego. Este sofrimento é ilusão, podemos dizer apêgo. Apêgo a um eu que sofre. O eu existe porque sofre. Quanto maior é o sofrimento, maior é o ego. E quem sofre, envolto num círculo vicioso, necessita sofrer mais ainda para o ego aparecer com intensidade. Não teria sido por causa do sofrimento, que o jovem Sidharta resolveu abandonar o conforto para entregar-se à ascese? Mas também qual foi a resposta de Bodhidharma a Eka, que reclamava por estar com o espírito intranqüilo? "Traga o espírito aqui, que o tranqüilizarei". Pensou um pouco e Eka rebateu: "Procurei-o por toda a parte, mas não o encontrei". "Bem -disse Bodhidharma- se não a encontrou, então já está tranqüilo". Sem ninguém para o alimentar, o sofrimento diminuiu de intensidade.
A prática budista rege-se pela busca da Iluminação. Se enquanto a mente estiver amarrada numa trama de preconceitos, valores temporais e abstratos, em fantasmas de nossos medos, então a prática se torna muito mais difícil de lograr êxito. Ao contrário, a inocência de nossos atos, a simplicidade de nosso pensamento, estão muito mais próximas da Iluminação. Disse o poeta alemão Holdërlin: o homem quando sonha torna-se num deus; quando pensa torna-se num mendigo.

terça-feira, junho 20, 2006

Entre errar e o redimir

Algumas categorias utilizadas no budismo são mal interpretadas, causando uma profunda confusão nas mentes dos iniciantes. Possivelmente a influência cultural vinda da tradição judica-cristã, como a noção de culpa, difícil de ser erradicada do corpo e mente, torna a prática menos eficiante. Dizemos de outra forma: errada. Não se trata de ignorância mas de um completo condicionamento da mente. Sei que os ocidentais cristãos sentem culpa. Por isso, devem se desculpar diretamente a um ente sobrenatural e abstrato, crença monoteísta de punição e salvação. Em linguagem japonesa, o perdão que se pede a deus chama-se zangue. É uma situação de extrema entrega, um ato de fé, para não ser castigado e de reconhecimento da condição submissa.
Quando estive no Japão, falei a respeito a um monge japonês. Disse que na infância, quando fazíamos a comunhão tínhamos que confessar os nossos pecados a um padre. Sem muita consciência do que estava acontecendo, ao refletir sobre os meus erros, o que me vinha era a minha relação, às vezes, pouco amigável com um gato. Ao brincar com ele, puxava o seu rabo. Assim me confessava "eu puxei o rabo do gato, pisei nas flores de minha avó, derramei água no sapato do meu irmão". Assim me arrependia dos meus pecados. Não sabia com propriedade, mas o padre com ênfase levava o meu ato de arrependimento a deus. Estava livre do pecado, pois tinha se arrependido. Na semana seguinte repetia o mesmo erro, e ia se arrepender novamente. Ao ouvir minha esquisita história, o monge não mediu palavras: "não acho que você devia pedir perdão ao padre e nem a deus; você deveria se redimir com o gato!"
Desta vez, não era mais o arrependimento submisso e temente, conhecido por zangue, mas sangue. Quer dizer, se cometi algum erro, caso houvesse reconhecimento, deveria se procurar pelo lado ofendido e não deus. Também, não houve culpa mas ação cometido intencionalmente ou não. Em budismo toda ação é karma. E todo karma repercute no universo inteiro, de maneira benéfica ou não. Não existe karma individual, senão coletivo. O fato de ser o filho de meu pai, de ter nascido no Brasil, morar em Santo Amaro se deve a karmas presentes, passados ou futuros. Estar treinando num templo zen também é um karma. Penso que devemos usar justamente o karma para viver melhor: condições propícias deste momento, ou seja o lugar, tempo e relacionamentos.
Enquanto, ao meu ver, o zangue diz respeito a um ser exterior, o sangue é exclusivamente de nossa responsabilidade. Um praticante do dharma não vive pensando em recompensas ou punições. Mas como um ser errante, admite isso, pode se inspirar a fim de desenvolver uma prática muito mais criativa e alegre. O então Superior Miyoshi dizia sempre que o budismo era para tornar o homem mais humano. O sangue, entendido como uma atitute de responsabilidade do praticante convicto, todos os erros cometidos no fluxo do karma, e se for de seu entendimento, pode ser anunciado com sinceridade. "Eu me arrependo por ter cometido tais erros e assumo a responsabilidade não cometê-los de novo", assim age.
Vamos a um exemplo concreto. Meu vizinho gosta de ouvir música sertaneja em alto volume e prejudica a minha tranqüilidade. Fui falar com ele, que me recebeu mal e sem se importar, continuou a música. Irritei-me e lancei uma pedra na vidraça dele. Refeito de minha raiva, percebi o mal cometido. Nesse caso, posso pedir perdão a deus (zangue) ou diretamente ao vizinho mas sem pagar o vidro (zangue). Posso alegar, cometi um erro mas você também estava errado. Mas um praticante do dharma, ao se arrepender, pede desculpas ao vizinho e paga o vidro quebrado (sangue). Existe uma diferença clara.
No Busshinji, certa vez estava acompanhado de um monge que viu sobre a estante um quadro com vidro quebrado. Foi quando perguntou irritado: "quem foi o responsável pelo prejuízo". Neste momento uma monja aproximou-se com as mãos em gasho e confessou submissa "fui eu". Ela pensava que uma simples confissão a redimia do erro. Mas o quadro continuava quebrado. No caso, houve zangue e não sangue. Simples palavras "fui eu" não era suficiente para livrá-la do karma, pois o quadro continuava quebrado. Nem mesmo a confissão era necessária, mas a disposição dela em consertar o quadro danificado. Em suma, não houve um arrependimento verdadeiro, apenas palavras vazias, distanciadas da prática.
Uma outra situação em que podemos praticar a verdade. Aos sábados os alunos leigos do Zen têm a oportunidade de realizar tarefas como nos mosteiros. São responsáveis pela harmonia produzida na cerimônia em que se canta o Sutra do Coração e da Grande Sabedoria. A palavra chave é responsabilidade. Por harmonia entendo a realização de tarefas coletivas, mantida a atenção, em que todos se esforçam ao esmagar o próprio egoísmo, estando em sintonia com a compaixão e sabedoria do Buda. Nesta ocasião não se deve errar nos toques do sinos do densho e nem dos sinos do sogei. Em hipótese alguma pode-se derrubar os sutras. De todos os erros, o maior é deixar cair os sutras. Cuidado entregadores de sutras, vocês são os responsáveis. Caindo um livro, o entregador deve se submeter ao Sanja. Fazer sangue. Dizer que o outro deixou cair, e não ele, não o isenta da ação negativa. Tarefa executada pelos que receberam a ordenação, pois ostentam o rakusu, o manto de buda, assumem a ação cometida. Um leigo não ordenado não entrega livros.
Antes de tudo, realizar Sanja, fazer sangue, não é condição de submissão, pelo contrário. Mas mesmo assim, se não puderam reconhecer o erro, eu próprio farei Sanja não no lugar dele, e nem por ele, mas por mim mesmo. Errei por não me fazer entender. Errei por ter falhado na tarefa confiada pelo Superior Saikawa. Errei por ter falhado com o meu mestre o então Superior Miyoshi em tornar a sanga um grupo melhor na prática do dharma.
Se a minha disposição não chegar a tanto, fingirei ser monge e fingirei que tudo está certo, quando na verdade tudo está errado. A prática do budismo não é um passatempo, um remédio paliativo para dirimir minhas febres. Os que assim pensarem, devem procurar outros caminhos e não o budismo.

sexta-feira, junho 16, 2006

Esvaziando a mente

Quando comecei a praticar o zazen, aos sábados, na segunda metade da década de 80, após o término das sessões, todos se retiravam. Não se falava muito. Uma vez, fiquei conversando no portão de entrada com um colega a respeito de um assunto pendente. Foi quando o monge responsável pelo yaza (zazen da noite) nos viu e me advertiu em japonês: "Não se deve ficar aqui conversando, senão o zazen perde o seu valor". Encerrei a conversa mas tal chamada nunca mais esqueci.
A finalidade dos encontros no Busshinji é justamente o zazen. Não se vai por outro motivo. Se o zazen é um processo de eliminar as impurezas da mente, as ervas daninhas da ilusão, não temos que imediatamente após o mesmo criar condições para retornar à situação anterior. Após o zazen ainda a mente se mantém em alerta: harmonia entre todos os seres vivos. Conversar amenidades é o mesmo que pisar na poça de lama. Sujamos a calça e a nossa mente. Dito de outra forma, não prolongamos o ato de zazen mesmo após o seu encerramento. Penso que o zazen não se encerra quando nos levantamos, pois a mente não corta o efeito de súbito. O zazen se prolonga por mais alguns instantes, dependendo do grau de aproveitamento de cada praticante.
Há muitos deles, os que querem que o zazen se estenda um pouco mais, querendo usufruir dos momentos de tranqüilidade e abandono. Outros, quem sabe, querem que o zazen se encerre o quanto antes, pois ficam irritados com a demora de seu término. Alguns vão fazer zazen para relaxar, outros para dormir, outros ainda como acomodação terapêutica. Cada um tem um zazen de acordo com sua disposição e entendimento. É uma pena os que agem de maneira equivocada. Perdem tempo. Enganam-se a si, com esta atitude egoísta, enganam a todos que levam a sério o budismo e sua prática sistemática.
O zazen não deve ser uma atividade a mais nas tardes de sábado. Alguns, talvez, se predispõem a ir nos finais de semana para encontrar os amigos. Depois do zazen vão ao cinema, a um jantar nos restaurantes da Liberdade, ao baile ou cair na gandaia. Pode-se fazer tudo isso, mas o zazen não deve ser visto com uma das atividades. Se for, cai no senso comum. Não se entendeu por quê fazer zazen. A respeito disso, me perguntei muitas vezes. Muitas foram as respostas, das mais louváveis às mais comuns. Cheguei a pensar que fazia zazen porque havia miséria na cidade de São Paulo, guerra no Haiti, fome na África, violência nas favelas. No momento, nada podia ser feito por mim, senão o zazen. O zazen não era uma fuga de minhas responsabilidades. Havia naquela zazen compaixão e clareza do que era o mundo da cultura. Agora faço apenas zazen. Não importa se a sala está cheia ou sem ninguém. Recentemente houve pânico pela cidade, era 2a.feira: o PCC estava atacando os postos policiais. Nada poderia ser feito por mim, apenas zazen. Se tivesse me retirado mais cedo, esquecendo o zazen, equivaleria ao capitão que abandona o navio. Se nem o monge faz mais o zazen, o que dizer dos leigos? Daí, a importância de se fazer zazen. E não existe liberdade maior do que sentar-se em zazen. Desse privilégio não podemos nos abdicar.

quinta-feira, junho 15, 2006

Os cabelos brancos de um careca

São através de pequenas colocações que os nossos mestres do Dharma nos transmitem fagulhas da Iluminação. De maneira direta, o Superior Miyoshi não deixou escapar: "depois de muito tempo, encontro-me com um conhecido que ao se dirigir a mim anuncia 'mas como você está bem, parece mais jovem' ". Ele manifestou ter se irritado com tamanha hipocrisia. Afinal, como alguém pode dizer tamanha mentira. "Não se fica mais jovem com o passar do tempo", desabafou ele.

O peixe e o pássaro

Assim ouvi do então Superior Miyoshi, numa de suas intervenções: " um peixe não sabe que é um peixe, um pássaro não sabe que é um pássaro; nem o peixe sabe que nada e nem o pássaro que voa; o peixe apenas nada, o pássaro apenas voa.

O cão e o gato

Descendo a rua da Glória, a mulher segurava numa das mãos a corda que sustentava a coleira do seu cão. Lá ia saltitante, quando, de chofre, numa casa abandonada alguns filhotes de gato resolvem desgarrar-se da mãe e avançam em direção à calçada. O cão se assusta e se afasta, cruzando a frente de sua dona. Os gatos páram por instantes. É quando a dona do cachorro tenta espantar os felinos, calcando forte os pés no chão diversas vezes. Quem passava nas proximidades não entendeu a atitude inusitada: a dona do cachorro tentando defender o seu "pet" de uma ataque de gatos ainda não desmamados. Ao se ver notada, a mulher não disfarçou certa vergonha, pois corou na hora e revelou um sorriso desajeito no canto dos lábios.
O senso comum tem demonstrado que os cães correm atrás dos gatos e não o contrário. Lembro-me do gato Chuvisco (desenho animado) atacando os ratinhos, mas o mesmo gato sendo encurralado pelo feioso cão buldogue. Neste, o gato leva o pior. De olho roxo, por cima de sua cabeça circulam passarinhos cantarolando.
Talvez a cultura tenha nos ensinado que o gato deve temer os cachorros. Mas na realidade, esta situação não acontece. O cão descrito ao se assustar com os gatos, não sabia que era um cão e nem que deveria correr atrás dos gatos. Por sua vez, os gatos possivelmente não sabiam o que era um cão. Assim sendo, nem o cão sabe que é um cão e o gato que é um gato. Entretanto, quando crescem um cão acaba se tornando um cão, da maneira como um cão deve ser, o mesmo ocorrendo com o gato. Em se tratando do cão, tenho as minhas dúvidas: ele se parece mais naquilo que a sua dona desejaria dele. Um poodle, por exemplo, apesar de macho, tem um requebrado e um porte que lembra um membro da Parada Gay. Um rabo esculpido como um ponpon. De outro lado, um pitbull, mal encarado, puxado na coleira por um homem mal encarado, usando camiseta sem mangas, em cujos braços tatuagens azul e vermelho ressaltam-se. Não acho que o pitbull seja tão mal assim, ao contrário de muitos dos seus donos. Nem um poodle tão afrescalhado como deseja as suas donas.
Quando penso nisso, fico aparvalhado. Será que não sou como os "pets" que se transformaram naquilo que os outros desejam? Queria ser como os filhotes de gato, abandonados, ainda não foram contaminados pela cultura. Por quê temer o cachorro? Quem sabe, três gatos juntos sejam capazes de colocar um cachorro para correr? E como gatos que nada sabem ainda, não precisam temer os cães, principalmente aqueles que perderam a autênticidade. Não acredito em determinados cachorros, estes que despertam suspeitas: roupinha no corpo e sapatinhos de lã. Deixaram de ser cachorros a fim de satisfazer as carências de suas donas. Merecem ser trucidadas pela garras felinas de um gato.

Dois cães

Essa história foi contada na sala de espera do veterinário:

"Uma mulher foi viajar, de férias, e levou seu cãozinho, um adorável poodle preto.
Quando já se encontrava no exterior, o cão veio a falecer. A mulher, muito triste com a perda do pequeno companheiro, decidiu despachar o corpo do animalzinho de avião para o Brasil, de forma que ele pudesse ser enterrado no jardim de sua casa. Para isso, instruiu a filha a ir buscá-lo.
E assim foi feito.
Porém, quando a encomenda foi descarregada do avião, os funcionários da companhia aérea estranharam aquele volume e, conferindo-o, verificaram se tratar de um cão morto. Assustados, pensaram que o cão havia sido despachado vivo, mas por engano embarcado no compartimento não pressurizado, vindo, assim, a morrer.
Após um momento de pânico, alguém sugeriu: 'e se comprássemos um cão igual e o substituíssemos?'
Dessa forma fizeram: saíram em busca de um poodle preto, com as mesmas características, e logo voltaram com o substituto.
A filha, conforme o combinado, foi ao aeroporto retirar o corpo do bichinho de estimação da mãe.
Qual não foi sua surpresa, porém, quando os funcionários lhe entregam um saltitante e barulhento poodle vivo!
Após muita gritaria, telefonemas internacionais e panos quentes, a confusão foi esclarecida.

Hoje o cão original repousa enterrado sob a goiabeira do jardim, enquanto o novo bichinho corre e brinca travesso pela casa, alegrando a toda a família.
Menos à avó, que acredita em fantasmas."

No Shodoka, está escrito assim:

O que é o bem, o que é o mal?
Os homens não o podem saber.
O que vai no bom sentido
ou contra a corrente?
Mesmo o céu não o pode medir.