Por muito tempo, a questão mística, de qualquer manifestação religiosa parecia-me algo restrito a determinados ascetas, afastados do convívio social, talvez isolados nas montanhas. Hoje penso que pode ser diferente. Entretanto, a percepção da entrega mística aconteceu comigo na "Garganta do Portal do Dragão". Assim era chamado o local em que ficava o Mosteiro Shogoji, na província de Kumamoto, Japão.
Quando estamos entregues nesta prática, de total desapego, num mosteiro em que não há luz elétrica, acorda-se para o zazen às 2h55, todas as manhãs, acabamos nos confundindo com a natureza. Por causa das montanhas, as nuvens ficam baixas e próximas dos nossos olhos. Não é incomum a ocorrência de tufões, que o chefe da aldeia avisa com três dias de antecedência. Antes, os monges limpam o terreno durante a maior parte do tempo, recolhendo o lixo, esvaziando as fossas dos esgotos. A respeito, todo o sistema de recolhimento de resíduos é constituído de um processo de transformação orgânica.
Sem dinheiro para gastar, sem rádio, sem televisão, sem ingerir carne e com muito trabalho, o monge vai se transformando também. Diante da natureza selvagem, o homem sente a sua fragilidade. Sente-se, no primeiro momento, imensamente pequeno. Uma imensa escadaria de pedra com cantos cortantes conduzia os visitantes até um pátio, de onde se avistava o Hondo - Sala de Buda. Ao deparar-me com o perigo, cheguei a pensar: "os japoneses, ao invés de facilitarem a vida dos homens, mantém a natureza intocável". Muitas vezes, tive que subir ou descer estas escadarias com guetas - tamancos altos, sustentados por duas bases. Certa ocasião, tive que descer as escadarias em noite de tempestade, com um guarda-chuva numa mão, na outra um farolete. Numa escada totalmente irregular, o mesmo poderia se dizer do caminho acidentando que conduzia até os nossos quartos. Cheguei a enfiar o pé um buraco e lá se foi o meu tamanco.
Com o tempo, a natureza indomável do Japão não nos parece tão hostil assim. Mais tempo se passa, e acabamos nos esquecendo da natureza. E esquecemos de nós próprios. Nada nos importa mais, totalmente abandonados. Estamos no templo de Daichi Zenji, o antigo patriarca que lá habitou. O poeta que admirava as montanhas, com quem conversava: "Vejo as montanhas/ As montanhas me vêem".
Toda esta integração com as montanhas, os tufões, as tempestades torrencias de três dias seguidos não quer dizer que estamos ilesos de nossas dificuldades. Um resto de ego ainda está presente em nossa mente. Mas ainda assim, o nosso esforço é imenso em realizar as nossas tarefas com grande esforço. Quando mais nos abandonamos, maior é a nossa força para vencer as dificuldades. Às vezes, surge algum indício de estafa, mesmo assim não nos deixamos entregar. Continuamos... Sem nos entregar, continuamos. É como uma queda no abismo, quando nos agarramos no capim para não cair, quando as mãos cansam, restam-nos os dentes; com os dentes nos agarramos. E os dentes ao não conseguir mais segurar, vem a queda. Mas sem medo da queda, abandonamo-nos mais uma vez. A mística zen é justamente o total abandono, aprofundando-nos na forma mais radical da prática. Parece que as condições do universo, novamente remanejadas, tomam um novo rumo e o praticante recupera a sua auto-confiança.
Retomemos a nossa prática na vida ordinária, dos acontecimentos temporais. Penso que podemos levar a nossa experiência no ponto mais crítico. Ao invés de tufões e tempestadades, temos pela frente um mal maior: o EGO. Assim, o Ego sofre, o Ego agride e é agredido, o Ego pensa e avalia, o Ego se acha maior, o Ego se inflama e quer elogios, enfim o Ego é uma grande droga. Mas sabedor disso, o praticante trabalha o seu Ego. Dentro do Ego do praticante existem dois eus: e Eu da prática e o Eu do iludido. Nas mais diversas situações, os dois eus devem dialogar:
- Tenho que controlar meu egoísmo - diz o eu da prática.
- Nada disso, você não tem sangue de barata - diz o eu da ilusão.
- Mas o egoísmo é um mal - continua o primeiro.
- Se você não lutar pelo seu amor próprio, você passará por bobo - contra-argumenta.
- Se cometi um erro, devo demonstar meu arrependimento - arremata este.
- Você não fez nada de mal, afinal errar é humano - justifica o da ilusão.
- Nisso você tem razão, mas posso remediar ao reconhecer o meu erro - tenta.
- Será tratado como um tolo se submeter a esta situação - aponta.
- Reconheço que fui vencido.
O vencido foi o da prática. Com todas as artimanhas, o Demônio da Ilusão, Maya, tal qual em Bodhigaya em que Siddharta venceu. Desta vez, a Ilusão derrotou completamente a prática.
A mística zen na vida cotidiana é levar às últimas conseqüências a prática. Destruir a cada minuto, a cada respiração o Ego da ilusão. O Ego, em si, a própria Ilusão. Destruir completamente todas as justificativas para a existência do orgulho, da vaidade, da ganância, da preguiça. Pior do que a existência da Ilusão é justificá-la. E isso acontece quando o Ego se acha mais importante do que qualquer prática ascética. Ao invés de ver em sí a semente do mal, o Ego vê no outro. Por isso, o Ego é dúbio, dual. O Ego é uma grande droga. Ele se disfarça de Racionalismo, de Amor próprio, de Individualidade, de Meu, de Tenho Direitos, de Eu Mereço, de Eu Quero. Alguém que acredita na existência do Ego, olha sempre para o próprio umbigo, desconhecendo que no céu uma lua brilha. Iludidos, agem como fantasmas. Loucos, crêem em suas próprias loucuras. Continuam sonhando, com medo de acordarem.
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