sexta-feira, agosto 18, 2006

O Portal do Ingresso

Reza a tradição que, quando o interessado a noviço desejava ingressar no Mosteiro de Shaolin, China, esperava no portal durante uma semana. Se durante o período de aceitação de candidatos a monges uns vinte chegavam, no segundo dia alguns tinham desistido, mais alguns dias se passavam e outros se avadiam, mais outros, até que depois de uma semana três ou dois, ou apenas um ainda queria ser aceito. Mas aqueles, que esperavam ficavam o tempo todo em pé, fizesse chuva ou nevasse durante o dia. À noite dormiam, para que no dia seguinte mais uma vez exercitarem a paciência.
Foi nas proximidades de Shaolin que o eremita Bodhidharma recolhido a uma caverna praticou por nove anos o zazen. Não queria receber ninguém. Sabendo o mal humor do anacoreta indiano, o jovem chinês Eka admoestou-o: "Quero ser seu discípulo". "Vá embora", retrucou o santo. "Não vou arredar pé daqui até me receber como o praticante do dharma", insistiu. Lá fora nevava. Por dias, Eka continuou à porta da caverna a fim de que Bodhidharma instruísse-o. Nada acontecia. Nenhuma palavra. Numa última tentativa, Eka sacou sua espada e decepou o braço esquerdo. Assim diz a lenda: "a neve branca tingiu-se de rubro". Reconhecendo a vontade de Eka em praticar, Bodhidharma tornou-o primeiro patriarca chinês do budismo Zen.
Ainda hoje nos templos do oriente este ritual segue, lembrando o gesto de Eka. Quando estive no Mosteiro Zuioji, antes de ingressar, após bater o kaishaku (duas madeiras) um monge dirigiu-se até mim, no frio da manhã de março, e perguntou-me.
- O que você veio fazer até aqui?
Por um momento, as palavras me fugiram.
- Vim praticar - disse convicto.
- Praticar o quê.
- Quero praticar o Caminho - arrisquei.
- De onde você vem? - confundiu-se ele.
- Chego do Brasil.
Pensou um pouco, nem imaginando onde ficasse o Brasil. Diante dele alguém tinha feições orientais e falava um pouco de japonês. Talvez isso o deixasse intrigado, mas sem relaxar as feições rudes, apontou a parede.
- Fique lá, olhando para a parede.
Assim fiquei uma hora, duas horas... Era frio e os pés me gelavam. Uma vez ou outra ouvia vozes atravessando o jardim de pedras.
Passado algum tempo, longo tempo, não sabia quanto, o mesmo monge com a voz baixa perguntou-me novamente.
- O que você veio fazer aqui.
- Bem, quero vivenciar na prática o budismo.
Assim fui aceito no mosteiro. Desta vez mostrando um pouco afabilidade, entregou-me um balde com água quente. Pude retirar minhas sandálias de palha, o par de tabis, rotos após a andança até o templo. O calor da água causou-me uma sensação de agradável bem estar. Mesmo assim, tinha que passar por outras provas. Por uma semana trancaram-me numa sala, o tangaryo, onde passava o tempo todo fazendo zazen e estudando os textos. Mais dois noviços estavam no recinto. E assim pude relaxar-me, pois poderia usufruir da companhia deles. Segundo eles, o noviço anterior, um americano, tinha ficado só, sem ninguém para conversar. E nevava lá fora. Pouca roupa para cobrir o corpo, mas mesmo assim a desistência não passava em nossas cabeças.
Nada disso do acima descrito se compara com a prática do dia a dia. Somente aquilo que colocamos reforça, de maneira enfática, a vontade de treinar. Ou a total desistência. Quando fui ordenado, em 89, um colega muito mais preparado do que eu também recebeu os votos. Um pouco mais de um ano depois, ele desistiu. Por teimosia, continuei. Esta teimosia acabou se tornando em minha fé na prática árdua e objetiva no budismo. Bem, aquilo que chamo aqui de budismo é a vida. Assumindo compromissos, assumimos uma postura de vida. Não tem nada a ver em acender incenso ou cantar os sutras, mais do que isso.
Se no início o budismo nos parece encantador, estamos ainda mergulhados em nossos sonhos, pois não enfrentamos ainda os nossos medos e orgulho. Muitos são os que ingressam no Portal da Sabedoria, mas poucos continuam. Trilhar na Senda da Sabedoria é muito mais difícil do que viver na ilusão. É a ilusão do Eu, da existência independente do Eu. Enquando se oferecer um incenso para Buda, estamos apegados a uma idéia de Buda. Mas se oferecemos um incenso para Buda e outro para o demônio, destruímos a dualidade. Fiquem tranqüilos, não faço apologia do demônio. Este trata-se aqui de uma alegoria. Quer dizer, acendo o incenso para os mestres, para os amigos, para os meus pais mas também para os que considero inimigo. A compaixão surge quando quero também ajudar os meus inimigos. Na verdade, não existe inimigos, mas apenas projeção de minha mente egoísta. Com a discriminação de minha mente chamo de inimigos aqueles que me desagradam.
Mas veja bem, os "inimigos" são geralmente os melhores mestres da prática. As dificuldades são os melhores momentos da prática. Nada melhor do que as contradições. Mas quem deseja realmente enfrentar os dilemas da vida, vivendo em pela harmonia com o diferente? Poucos, creio eu! Certa vez li uma declaração do Dalai Lama: "não quero que todos se tornem budistas, pois o budismo é muito difícil de ser praticado". Praticar o Caminho requer acima de tudo um gesto de humildade: "destruam o meu ego". Entretanto, o apego ao ego é mais do que a própria vontade de praticar. Posso dizer de outra forma: praticar o budismo é desapegar-se do ego. E quanto maior é o ego, menor é a força da prática. A estes, nada mais resta do que continuar acreditando em suas crenças fantasiosas de um mundo dualista e centrada na valorização do ego.

Um comentário:

  1. No Busshinji não temos este ritual de deixar os novatos à espera do lado de fora por dias mas, todos têm um ego, do tamanho de um muro. Quando comecei a praticar no Busshinji haviam dois monges que quase não falavam, um deles não era muito bem humorado e me deu algumas broncas enfezadas por erros principiante. O outro respondia minhas perguntas com três palavras: "Isto não importa". Quase desisti, aconteceu de voltar para casa no meio do caminho para as sessões de zazen no templo, mais de uma vez. Na segunda ou terceira vez que pensei em desistir, percebi um pouco decepcionado que ninguém amaciou meu ego para que eu voltasse, pensei: será que querem que eu volte? Depois pensei: quem é que decide aqui, meu ego machucado ou eu?

    Fiquei.

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