quinta-feira, abril 19, 2007

História sem importância

Quando ainda era verão e os torós de dezembro lavavam a cidade, um homem pulou o muro da casa da esquina e abrigou-se na varanda dos fundos. A modesta casa já estava fechada há meses, pois seus moradores, velhinhos, passavam uma temporada com os filhos, no interior. Terminada a chuvarada, o homem permaneceu ali. Acomodou seus trecos num saco de pano no canto, estendeu um cobertor no chão e passou a habitar aquele pedaço da casa. Usava apenas o chão, o telhado do alpendre e a água do tanque.
Dos prédios de apartamento vizinhos, os moradores observavam sua discreta figura. Dia após dia, acompanhavam seus movimentos, o entra e sai sutil, pela fresta do portão, a pouca roupa lavada no tanque e o despertar cedinho, junto com o sol. Mas no domingo, como acordam mais tarde, já encontravam o alpendre vazio. Foi com essa rotina que todos se acostumaram.
Assim se passou a virada do ano. Entre foguetes e comilanças, um ou outro ia à varanda e constatava a discreta presença no quintal escuro da casa. Também se foram janeiro e fevereiro. No aguaceiro de março, nas tardes em que o céu desabava, ele já estava recolhido e passava longas horas observando a chuva cair no mato que crescia no quintal. Nesses dias, enquanto as imagens dos congestionamentos passavam na tv e as luzes dos apartamentos se acendiam mais cedo, lá do alto dos prédios os moradores ficavam aliviados ao ver a luzinha fraca da brasa de seu cigarro: ele havia se abrigado a tempo!
Abril trouxe um azul diferente no céu e um vento fresco, às vezes frio. Talvez por isso, talvez por motivos que não se podem descobrir, numa manhã de sábado o homem acordou, foi até o fundo do quintal, apanhou uma barra de ferro e começou a forçar a janela dos fundos.
Quase imediatamente a rua ficou repleta de carros de polícia, com luzes girando, guardas armados e a vizinhança toda agitada nas calçadas. Alguém dos prédios havia dado o alarme.
O homem foi recolhido, enfiado num camburão e levado embora.
Os moradores ainda se agitaram por algum tempo na rua, contando suas versões, impressões e imaginações.
De repente aquele azul profundo de abril no céu, um ventinho frio, e todos se calaram.
Voltaram para suas casas e apartamentos mudos, a cabeça baixa, saudosos como se tivessem perdido um vizinho.

No Shodoka está escrito assim:

Uma única natureza
contém todas as naturezas;
uma única existência
contém totalmente todas as existências.
Uma única Lua
se reflete em todas as águas;
todos os reflexos
da Lua na água
provêm de uma única Lua.

5 comentários:

  1. Por outro lado. Seria o bastante para uma pessoa viver aquele abrigo do sereno, da chuva e do sol e a água do tanque? O que levou o homem a ultrapassar aquela fronteira imaginária?

    ResponderExcluir
  2. A fronteira é vazia, não está na janela, na barra de ferro nem na mente daquele que chamou a polícia.
    Logo, como o homem poderia ultrapassá-la?

    ResponderExcluir
  3. O vazio é preenchido pela ilusão.

    ResponderExcluir
  4. A ilusão é igualmente vazia. Como poderia preencher algo?

    ResponderExcluir
  5. Anônimo1:21 PM

    Penso na situação do mendigo (miséria,prisão) e reflito sobre o que ele pensa e como sente o vazio e ainda como vivencia a fronteira imaginária X real.
    Denkô

    ResponderExcluir