No Morro dos Abutres Buda tinha diante uma multidão, quando, de súbito, levantou um galho com uma flor. Apenas o sorriso de Mahakasyapa iluminou-se, sem que os outros nada entendessem. Nenhuma palavra. Um gesto apenas. Nesse momento, o Honorável Mahakasyapa recebeu a transmissão do Dharma.
Quando Eihei Dogen esteve treinando em Tenzo-zan, na China Song, o mestre Nyojo corrigia seus alunos com rispidez. Não tolerava que eles adormecessem durante o zazen. Se isso acontecesse, se toda a atenção se perdesse, Nyojo não media palavras e ameaçava com todas as formas de agressões verbais e físicas. Foi quando um grupo de monges resolveu pedir que o mestre fosse mais afetuoso e tolerante com eles. Em lágrimas, Nyojo explicou a sua postura: "quero que vocês entendam e por isso, ajo desta maneira". Havia no mestre chinês uma profunda compaixão.
A relação entre o mestre e o discípulo é enérgica, sem a qual a transmissão não se realiza. Meu mestre Miyoshi foi uma incógnita em minha vida. Exigia de mim mais do que dos outros. Em outras palavras, exigia de determinados discípulos mais do que de outros. E cheguei a seguinte conclusão: a dureza para uns era compaixão, a docilidade para os outros era compaixão. Para uns, a dureza formava o caráter e criava resistência para a prática. Para outros, a docilidade significava uma profunda compaixão devido sua debilidade.
Quando da transmissão do dharma, disse-me que teria que copiar toda a linhagem com pincel em tinta carvão. Tarefa difícil, mas a executei. Passei o Ano Novo copiando sem errar a linhagem toda. E da viagem a ser realizada ao Japão, tinha arrumado um companheiro que me levaria junto ao mosteiro. Ao saber disso, desencorajou o rapaz e disse: "quero que ele vá sozinho". Nunca tinha viajado só ao Japão, muito menos sabia como usar os transportes internos. Hoje entendo a sua preocupação. Ele queria que eu criasse resistência para andar com as próprias pernas, sem necessitar muletas. Queria que nem mais dependesse dele.
Li uma vez uma colocação oportuna do Dalai Lama. Dizia ele que as pessoas não necessitavam se tornar budistas para viver em paz. Aliás, "o budismo é uma prática difícil, para poucos". O entusiasmo pelo budismo acaba quando o amor próprio suplanta o amor pelo todo.
Destruir o ego é a principal prática do budismo. Não apenas o ego da exaltação, mas também o da comiseração. O sofrimento é gerado pelo karma, e também pela existência do ego. Este sofrimento é ilusão, podemos dizer apêgo. Apêgo a um eu que sofre. O eu existe porque sofre. Quanto maior é o sofrimento, maior é o ego. E quem sofre, envolto num círculo vicioso, necessita sofrer mais ainda para o ego aparecer com intensidade. Não teria sido por causa do sofrimento, que o jovem Sidharta resolveu abandonar o conforto para entregar-se à ascese? Mas também qual foi a resposta de Bodhidharma a Eka, que reclamava por estar com o espírito intranqüilo? "Traga o espírito aqui, que o tranqüilizarei". Pensou um pouco e Eka rebateu: "Procurei-o por toda a parte, mas não o encontrei". "Bem -disse Bodhidharma- se não a encontrou, então já está tranqüilo". Sem ninguém para o alimentar, o sofrimento diminuiu de intensidade.
A prática budista rege-se pela busca da Iluminação. Se enquanto a mente estiver amarrada numa trama de preconceitos, valores temporais e abstratos, em fantasmas de nossos medos, então a prática se torna muito mais difícil de lograr êxito. Ao contrário, a inocência de nossos atos, a simplicidade de nosso pensamento, estão muito mais próximas da Iluminação. Disse o poeta alemão Holdërlin: o homem quando sonha torna-se num deus; quando pensa torna-se num mendigo.
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