Nunca acreditei tanto nesta questão, que volto a escrever a respeito. Nada melhor do que a expontaneidade da criança. A isto chamamos de inocência. No caso de um "caminheiro da dharma", agir envolto nesta aura da inocência o torna realmente um ser da prática verdadeira. Costuma-se dizer que somos "crianças de Buda" - Hotoke no kodomo. Assim dizia o então abade do Mosteiro Zuioji, que tive a oportunidade de freqüentar. Penso que assumir a inocência na prática é tirar a máscara das representações mais diversas do convívio social. Não é este caso, mais a inocência da criança, que ainda não passou pela experiência da vida. Do praticante do caminho, a inocência é aquela assumida de forma consciente com o corpo e a mente totalmente desarmados. Desta forma, agimos como fosse a primeira vez, sem os karmas de vida passadas, quer dizer aqueles construídos no contexto histórico. Explico: com a mente livre, totalmente desapegada. Esta mente sem amarras possibilita o praticante ver o mundo não mais pelos olhos do ego, de um self independente, mas pelos olhos de Buda. Não é mais eu que vejo, mas as coisas se fizeram aparecer até mim. Não vejo mais como os olhos egoístas, que somente olham para aquilo que convêm. Os poetas também possuem a inocência no olhar, no cheirar, no paladar. Sentem todo o mundo de maneira livre. Sem condicionamento!
Aqueles que agem com a mente armada, assumindo uma personalidade, nada sabem a respeito do mundo além da "forma" e da "não forma". Continuam prisioneiros das manifestações fenomênicas e acreditando na sua existência. Com o olhar armado nada vêm. Com os ouvidos armados nada escutam. Com a língua armada nada sentem. Com a epiderme armada nada percebem. Ao mesmo tempo que todo o corpo encontra-se coberto, nada o atinge, em contrapartida nada percebe. Mantém-se armado porque temem perder a identidade. Temem que o ego seja atingido. Estes pensam que o corpo lhe pertence, assim como os quatro sentidos. Cinco sentidos, adicionando também a mente. Mas nada lhe pertence, inclusive a mente. Encontram-se estes totalmente deludidos.
Por isso, o praticante que merece usar este nome deve resgatar de dentro de sí a inocência. Nada ele tem a temer. A inocência é um grande trunfo de qualquer praticante. Foi com a inocência que existiu o poeta-monge Saigyo,Ryokan, Ikkyu, Bashô e Santoka. Mais recentemente, Sawaki Kodo. A inocência é a própria verdade. Ao contrário, o não inocente é malicioso, interesseiro e esperto. Assim, ainda que vivamos no mundo temporal, das paixões, do pensamento racional, por algum momento devemos praticar o caminho do monge - o desapego. Somente um inocente consegue desapegar-se.
Os apegados sofrem. Sofrem sobremaneira por causa da existência fenomênica de um ego, que por não ter a inocência, ficam suscetíveis a todas as manifestações da miséria humana. Estão apegados ao próprio egoísmo: de suas opiniões, de seu sofrimento, de seus caprichos, de sua visão estreita de mundo, de seus sonhos e pesadelos, de suas vaidades, de suas neuroses.
Estar com a inocência não é negar o mundo temporal, mas também acreditar no mundo mítico. Penso que o mítico é mais real do que o mundo em que vivemos. A própria inocência pode ser um mito, bem como a existência de monges e praticantes da sabedoria e desapego. Alguns acham que fazer zazen é estar ligado ao mito.Ao invés disso, preferem outras atividades menos ascéticas. Talvez seja mito acreditar na iluminação. Podemos pensar no mito como sendo algo irreal para os não praticantes e mito como real para aqueles que praticam. Se a primeira assertiva é negativa, a segunda nos parece correta, levando-se em consideração o praticante como incorporando o espírito da inocência, que se processa na condição real de existência. A colocação anterior é pura abstração, enquando a outra é experimental. Nesse caso, a inocência é mais autêntica do que as máscaras assumidas pelos não praticantes. Uns necessitam de máscaras, outros não.
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