sábado, dezembro 16, 2006

Após o vendaval

Mais do que o esperado, muitos são os sobreviventes, poucos os mortos. Durante seis dias entre 28 a 32 pessoas submeteram-se a um treinamento do corpo e da mente, repetindo o mesmo processo que culminou na Iluminação do príncipe Sidhartha. Estamos na Rua São Joaquim, uma quadra e meia a partir da estação de metrô homônimo. Ainda está escuro quando os primeiros começam a chegar. Possivelmente o primeiro deles seja o monge inô, que cruzou os bairros da Lapa, Barra Funda, Santa Cecília, Vila Buarque, Consolação, Bela Vista até chegar na Liberdade. Ele vem montando a sua bicicleta novinha, que resolveu usar no último dia do Sesshin da Iluminação. Templo Busshinji se avista com seu portal, assim que descemos a São Joaquim. Temos alunos de várias origens: Florianópolis, Curitiba, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraíba e um de Barcelona, Espanha. Os sotaques são muitos, que se ouvem nos intervalos das sessões de zazen. Bem, está proibido conversar. Desta vez, procuramos relaxar um pouco.
Assim que se penetra na Sala de Buda, que usamos como dojo durante este sesshin, duas fileiras de tatamis estendem-se pelo espaço em forma de L. No encontro destas destas fileiras está instalado o altar do Bodhisattva Manjusli. Perto dele, o lugar do roshi. De olhar calmo e voz branda, mergulhado em sua concentração mantém os olhos fechados. Mas não dorme. Com os olhos fechados ele sabe o que acontece em cada ponto da sala, mesmo às suas costas. Cada invasão naquele ambiente sagrado, de algum aluno atrasado ele reconhece. O chão de madeira estrala ao peso dos corpos e alguém menos avisado ainda que procure disfarçar denuncia a sua presença.
Pela rua São Joaquim às vezes o barulho dos carros é imenso. Mas neste sesshin, ninguém reclamou. Aliás, só tivemos um abandono no primeiro dia: "este local é muito barulhento e poluído", justificou a atitude. A respeito pensei nas horas vagas, será aquela rua realmente barulhenta. Sentado em zazen, quando me dava conta do barulho, então o barulho surgia. Nos momentos das refeições, tinha a impressão que havia barulho, mas a atenção deveria se dirigir a algo mais importante: o movimento das mãos ao manusear o hashi, a colher, o setsu, as tijelas (haviam três). Para cada utensilho um tipo de alimento: o arroz, a sopa, a verdura, a converva, a sobremesa. Ninguém se atrasava, ninguém se adiantava. Todos começavam juntos e juntos terminavam. Senti uma saudade do sodo do Mosteiro Zuioji, onde, pela primeira vez, exercitei minhas habilidades manuais e atenção permanente. Por isso, nenhum barulho, caso existisse não incomodaria. Uma vez um mestre disse que o barulho desaparece quando ele vem e se retira normalmente. Entendi que tínhamos que aceitar o barulho em nosso entendimento, sem relutância, que ele desapareceria em seguida sem deixar marcas.
Durante o treinamento talvez o momento mais difícil seja o do relacimento humano. Em sua miséria, o ser humano pensa e problematiza a vida: eu e o outro, a vaidade, a raiva, a intolerância, o orgulho, a soberba e outros adjetivos piores do que os mencionados. No sesshin estas ervas daninhas da mente surgem sem moderação para que a pessoa se dê conta de sua delusão. Mas por outro lado, os mansos de coração sofrem menos as dores da mente e do corpo. Envergando seus mantos negros nada os atingem, pois mantém-se em permanente atenção e sentam-se em zazen sem hesitação. Havia monges jovens de menos de trinta anos, outros mais velhos, depois dos setenta. Sentados, nada os distinguia.
Ao final do sesshin, alguma coisa aqueles jovens e velhos monges e leigos, enfim praticantes do dharma, tinham aprendido. Não posso dizer dos outros, mas cada vez a minha convicção de que o tempo é fluido o suficiente para não ser vivido integralmente se torna patente. Assim, se a atenção não estiver presente a cada instante de nossa vida perderemos o trem da história. Penso que poderemos priorizar mais o tempo da atenção e menos o tempo inútil das amenidades. Para isso, não existe lugar para egoísmos e outros venenos provocados pela ignorância.
Por tudo, reverenciemos a Buda.

Namo Tassa Bhagavato Arahato Samma Sambuddhassa

Homenageio a Ele, ao Afortunado, ao Consumado, ao Perfeitamente Iluminado.

Um comentário:

  1. Emerson, fui apagar uma das duas inserções de "Após o vendaval" e aquela que tinha seu comentário foi a que desapareceu. Peço que republique seu comentário.

    Gasshõ

    ResponderExcluir