Sabedor das dificuldades enfrentadas pelos os que submetem-se a uma prática intensiva de destruição de ego, durante os sete dias de retiro - a que chamamos sesshin - o primeiro dia acusou uma baixa. Tão rápido quanto as poucas horas, depois de seu início. Estamos em pleno Sesshin da Iluminação no Templo Busshinji, aquele da rua São Joaquim. Aproximadamente dois milênios e meio o príncipe Sidhartha também enfrentou situação semelhante. Debaixo da árvore de Bodhi, enfrentou um a um os obstáculos produzidos pela própria mente. E um a um foi vencendo as filhas sensuais de Mara, os demônios de língua de fogo, os animais fantásticos, os fantasmas e toda espécie de praga. O próprio Mara surgiu em sua frente, com a cara do outro, com a cara do próprio Sidhartha. Mas em nenhum momento Sidhartha ofereceu resistência, nem os alimentou em sua fome de ilusão. Deixou que viesse, deixou que se fossem. Nada daquilo tinha consistência: totalmente vazios.
Da mesma forma que Sidhartha, no mês em que se comemora a Iluminação, os alunos de zen do mundo todo, seguindo as instruções de seus mestres realizam caminho semelhante. Nada é fácil, bem contrário. As pernas doem após 40 minutos em lótus, ou semi-lótus ou simplesmente sentado com as pernas cruzadas. Mais 10 minutos de meditação andando (kinnhin) para relaxar, sem perder a concentração. Mais 10 minutos para usar o banheiro ou tomar água, e inicia-se de novo um novo ciclo de zazen. Tudo igualzinho como era antes. Isso se repete por quase oito horas. E na mesma posição sentada, os alunos recebem a ração da manhã e mais tarde o almoço. Daquela forma participam das cerimônias da manhã (Choka), do antes do almoço (Nichu Fugin) e da tarde (Banka). Quando é a hora do samu (limpeza), de menos de 30 minutos, pode ser pensado como o momento de relaxamento. Nada mais do que isso. Não se tem tempo para conversar, pois conversar é expressamente probido. É proibido fazer corpo mole na hora do samu: descansar enquanto outros trabalham ou fingir que trabalha enquanto outros fazem o contrário. A quem podemos enganar? A sí próprio, somente a si!
Nesta baixa, algum pensamento ficou. Disse a pessoa que abandonou a prática, antes mesmo dela começar, que o local em que localizava-se o templo era muito barulhento. Bem, até então eu próprio não tinha percebido isso. Barulho? Claro, havia. Mas não sabia como o barulho perturbava. Na rua São Joaquim o trânsito de mão única flui em direção à Avenida Liberdade. Por isso, algumas vezes os carros disparam suas buzinas. Não apenas isso, os pneus rangem, os escapamentos estrondam. Procurei amenizar e rebati: "o barulho pode diminuir em determinados horários". Entretanto, a resposta foi rápida: "barulho e poluição, por isso não quero mais participar deste retiro". Não insisti mais e aceitei seus motivos para a desistência.
Foi por causa do barulho que as pessoas não meditam? Fiquei imensamente desapontado. Poderia ouvir outras razões como "o tempo de meditação é muito longo" ou "não estou preparado para um treinamento tão rigoroso". Seria mais sensato. Não, não era o caso. O caso era o barulho. Um barulho que tinha se transformado em Mara. Ouvi falar de pessoas que procuram o silêncio das montanhas, seu ar puro, a paisamente bela, para meditar. É válido, não nego. Mas me parece algo egoísta. Meditar nas montanhas para eu estar bem. Alguns querem ouvir o canto dos passarinhos ou uma melodia agradável.
Quando estou preocupado com o barulho de fora do templo, do qual me encontro dentro, crio a dualidade do dentro e fora. Será que existe o dentro e o fora? Somente na mente dos condicionados a tal idéia. Apesar do barulho da Rua São Joaquim, nunca me preocupei com ele. Posso dizer que o barulho e eu sempre fomos um, sem eu saber. Mas agora que alguém disse que o barulho perturbava, me despertou a ilusão da existência do barulho e da existência de um eu que o ouve. Felizmente como o zazen tornou-se meu alimento, meu oxigênio, esqueço-me do barulho, sem que ele realmente me perturbe.
A lição que ficou é de que um barulho apenas pode ser tão terrível como o pior dos pesadelos. Em proporção igual, quanto mais ele me perturba, maior é o meu ego. Infelizmente vivemos num mundo com muito barulho, ar poluído e uma infinidade de outros obstáculos. Assim, se o barulho for suficientemente significativo para impedir a prática de um estudante do budismo, o que será de todas as outras ilusões como vaidade, raiva, intolerância, covardia, egoísmo e ignorância. Isso significa que antes de iniciar a corrida desisti de correr. Antes de responsabilizar o outro - o barulho - quem sabe, deveríamos assumir a nossa incapacidade de lidar com o mundo à nossa volta. Posto de outra forma, o mundo que nos cerca e nós próprios somos a mesma coisa. Percebi isso em minha própria vivência: moro próximo à Escola de Samba Vai Vai. Nas semanas que antecedem o carnaval há ensaios todos os finais de semana, mas nunca isso foi problema para mim. Não que os meus ouvidos tivessem se acostumado com o barulho dos requipes e surdos, mas a minha concentração se direcionava a outros pontos mais localizados. Se alguém não tivesse me dito, não saberia do barulho da escola de samba. Não saberia também do barulho da Rua São Joaquim. Prefiro esquecer que alguém me disse, um dia, que o Templo Busshinji ficava num lugar barulhento. Ou pelo contrário, ainda bem que tem barulho. Não apenas lá, mas igualmente nas proximidades do aeroporto, da Radial Leste, das construções de prédios, dos estádios de futebol, das igrejas evangélicas. Pois o mundo é barulhento. Mas se isso fosse motivo para atrapalhar a minha prática, já teria desistido. Como não pretendo negar o mundo da maneira como se apresenta, então o melhor é adaptar a minha prática com as condições dele: faço zazen no barulho. E haja visto que alguns adoram colocar fones de ouvido enquanto trabalham. Dizem estes também que conseguem concentrar-se mais no serviço com barulho nos ouvidos. Que mundo estranho que vivemos ou será apenas o egoísmo das pessoas, que não param de olhar fixamente para o próprio umbigo.
konnitiwa, Handa-san.
ResponderExcluirNão seja tão crítico... Dôgen-sama, no Fukanzazengi, e Keizan-sama, no Zazenyôjinki, recomendam lugares tranqüilos para o zazen... :)
gasshô
Emerson
O barrulho está em todos os lugares. Não há como fugir, pq ela vai conosco onde vamos :-)
ResponderExcluircada pessoa ja vem com os seus proprios obstáculos, reconheça os seus e não se preocupe que cada um tem o seu momento.
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