sábado, dezembro 23, 2006

Carta a um amigo 1

A pergunta que os neófitos querem resolver é a respeito do sentido da vida e o mundo que o circunda. Teria sido assim também quando o jovem príncipe Sidhartha, que após vencer as muralhas que o isolava do mundo, constatou a miséria que cercava a existência humana. Percebeu que a dor estava presente, gerando desta forma o sofrimento, e que era necessário conhecer as razões disso. Não podemos negar que ele realmente exista em circunstâncias específicas. Por isso, a primeira nobre verdade é a existência da dor. Ela pode ser criada pela nossa mente quando a nossa experiência depara-se com algumas situação. Pode ser de perda. Para uma criança, se alguma outra tomar-lhe o brinquedo pela primeira vez sentirá as dores do sofrimento. A mesma criança, mais tarde, se não ter os seus desejos satisfeitos, como um lanche da rede Mac Donalds também conhecerá o mesmo sentimento. Na adolescência, o jovem desejará ter roupas de grife, celular, tênis importado, carro, mochila, e uma mesada que nunca será suficiente. Na falta destes, haverá a dor e conseqüentemente o sofrimento. E na idade adulta quem não conseguir ingressar numa universidade de primeira linha, terá que se contentar com uma outra, de categoria inferior. Ao tentar vencer as etapas do vestibular e caso seja frustrado, vem a dor e novamente o sofrimento. Depois, não conseguir um bom emprego também causa dor. Por inúmeras vezes, tenta-se ingressar na carreira pública. Enquanto não se entrar, tem dor e sofrimento. Uma vez lá dentro, a dor surge toda vez que sua ânsia de galgar postos mais compensatórios não se realiza. A dor surge, inclusive, quando o colega conquista o mesmo que ele deseja. É a dor do ciúme, da inveja. Sente-se rebaixado e diz:"eu merecia mais do que ele". E em seguida, mais dor. Assim perdura pelo resto da vida...
Esta dor é gerada pelo apego a idéias preconcebidas e a coisas. Trata-se de uma mente condicionada pelas exigências sociais, condizentes com o sistema econômico em que vivemos. Penso que sempre o sofrimento estará nos espreitando, como uma sombra sinistra onde quer que vamos. Não obstante, se constato que a dor existe, tenho que descobrir a sua origem. Colocamos acima também esta segunda nobre verdade: a origem da dor. A não satisfação de nossos desejos é a origem da dor. Podem ser múltiplos os motivos para isso. Não acredito que exista alguém totalmente desapegada, que não é o caso da prática budista. Acabar totalmente com os nossos apegos seria temeroso. Ao meu entender, o segundo voto do Bodhisattva diz: os desejos são insaciáveis, faço o voto de extinguí-los, é uma forma de comprometermo-nos com aquilo que realmente almejamos. Entendo que o desejo ou paixões sejam manifestações emocionais momentâneos, sem muita consistência. Uma vez que um adulto adquire um carro novo, aquele desejo foi satisfeito mas em sua mente outros estarão se formando. Quando jovem estudante de História na PUCSP desejava comprar todos os livros citados e sugeridos. Invejava os professores que tinham uma elevada bagagem cultural, uma erudição sem igual. Queria ser como eles e para isso, precisava dos livros. Quanto mais, mais queria e formei um acervo de mais de cem livros de história. Ainda assim, queria adquirir. O sofrimento era grande. Nesta época o meu sofrimento tinha por origem a vaidade intelectual não satisfeita.
Reconhecer que algumas necessidades não passam de paixões é o ingresso no Portal da Iluminação. E assim, podemos dar cabo nesta forma de sofrimento.
Existe uma clara diferença entre condições necessárias para a existência e desejos. Entre as condições falamos da educação, da saúde, moradia, cultura. Resumindo estes, três são as necessidades mínimas para a existência: alimento, roupas e moradia. Não se tratam estes de desejos. Para um médico ter um telefone celular não é desejo, mas instrumento de trabalho. No meu caso, descartei a muito tempo esta comodidade. Alguns podem achar que ter um computador seja um desejo, enquanto outros uma necessidade de trabalho. Para mim o computador é uma necessidade de expressão.
Entendendo desta maneira, o desejo é a causa maior de nossos sofrimentos. Não seria o contrário. Mas vivemos num mundo de desejos, constamente veiculados pela imprensa, pela propaganda, pelas relações sociais. Ser escravo dos desejos é pior do que ter desejos.
Não que seja um placebo para isso, mas o zazen é uma maneira de amenizar o aparecimento dos fantasmas de nossa mente. Posso dizer, dos desejos. No zazen tenho a capacidade de perceber melhor o que seja a verdade e o desejo. Por isso fazemos zazen. Como uma poça de lama em noite de lua cheia de outono, se o espelho d'água não for perturbada, reflete-se inteiramente o universo. Reflete a lua, os postes, os carros, a bota das pessoas etc. Assim é a nossa mente: reflete apenas. Uma vez que a água da lama é incomodada pela presença de uma pisada, a água se turva e trepida sem que o reflexo realmente possa refletir o mundo real. A mente em estado de zazen é como a água calma de uma poca de lama.

2 comentários:

  1. Anônimo4:44 PM

    Creio que esta foi a resposta. Se foi, agradeço de coração. Se não for, valeu a pena de qualquer forma.

    Abraços
    Diego Cussiol

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  2. Anônimo9:47 AM

    Agora aguardo a outra parte.

    Abraços
    Diego

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