segunda-feira, outubro 23, 2006

Prática mística ou Mística da prática

Fica por conta de cada interessado na prática do dharma, inclusive na tradição zen. Seria estranho chamar o Zen de prática mística, mas talvez alguns o encarem um pouco desta forma. Assim, acendem incenso, tocam o sino e têm uma imagem de Buda num altar. Penso que desta forma criam condições apropriadas que podem melhorar a concentração. Não que seja necessário. Fazer zazen, em qualquer lugar que seja. Certa vez fiz na Casa de Detenção de São Paulo - o famigerado Carandiru - ao lado de presos que cumpriam penas por delitos desconhecidos por mim. Mas o que se sentou ao meu lado confessou: "amanhã serei julgado por ter matado a minha esposa". Neste caso não se tratava de prática mística. Não importa, às vezes realizamos uma prática em que elementos místicos podem estar presentes, outras vezes em qualquer outro lugar. Alguns preferem as matas, na tranqüilidade das montanhas. Dizem estes últimos que querem receber a energia das plantas e respirar o ar puro.
Aprendi que quando Sidhartha vislumbrou adiante a estrela da manhã e tornou-se um com todo o universo, conclamou: "neste momento eu e todos os outros seres alcançamos a liberação". Quando nos sentamos, todos os Budas se sentam conosco. Acredito que "sentar-se" não tem por finalidade criar bem estar naquele que experimenta, mas despertar a compaixão e a sabedoria. Não se faz zazen para ficar bem. Nem para respirar ar puro, nem para receber energia. Me parece um pouco egoísta tal atitutude. Ainda que a nossa relação com o místico esteja presente, não podemos deixar que o misticismo seja tranformado em ponto principal. Se isso acontecer, agiremos como macacos tentando agarrar a lua refletida na água. É ver o dedo do mestre que aponta para a lua, sem ver a lua realmente.
Ao invés disto, a prática realizada com toda a atenção nos revela uma faceta mística do dharma. É a mística da prática que tenho procurado em toda a minha vida. A respeito, quando estive no Japão, em treinamento no Mosteiro Shogogi percebi que no processo de abandono, do esmagamento do ego, a interdependência não era apenas palavra mas condição concreta para a nossa existência. No caso, trata-se de uma maior interação com o universo, mais do que isso: não existia nem eu, nem o outro. O mestre Dogen Zenji disse apenas: corpo e mente abandonados, abandonados corpo e mente. Não é uma prática mística, mas a sua realização revela um universo místico.
Entre nós, somente os que participaram de um sesshin completo: sentando-se 8 horas por dia, mantendo o silêncio, realizando o dokusan experimentaram algo parecido. Temos que levar esta experiência para o nosso cotidiano: a atenção. No nosso dia-a-dia somos acometidos por uma quantidade enorme de informações, que não pertencem a nós. Submetemo-nos a condições impostas pelo meio em que vivemos. Usamos as roupas que os outros usam, pintamos os nossos rostos, os lábios, e falamos igualzinhos aos outros. Em suma transformamo-nos no outro, totalmente diferente do que realmente somos. Pensamos e falamos como fôssemos o outro. Freqüentamos os mesmos lugares, achando que somos originais. Acabamos nos esquecendo da nossa prática e assumimos a nossa condição de macacos. O que um faz todos os outros fazem. Ainda que seja assim, agindo como iludidos, temos que manter a chama da prática em nossas mentes. O pior é crer que a ilusão seja verdadeira e condição primordial em detrimento da própria verdade.
O que realmente importa é termos condições de ver a verdade, com olhos da iluminação através da bruma provocada pela ilusão. Ou seja, esta é a mística da prática. Com os pés firmes no chão ao invés de andar sobre as águas. Nada de sobrenatural, nada que seja mágico. No dharma nada disso tem lugar - apenas a verdade.

Um comentário:

  1. "Acredito que "sentar-se" não tem por finalidade criar bem estar naquele que experimenta, mas despertar a compaixão e a sabedoria."

    Gasshö

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