terça-feira, outubro 31, 2006

Transmissão pela prática

Conta-nos o mestre Dogen Zenji que, quando encontrava-se em treinamento, nos momentos de zazen, com energia o abade Nyojo admoestava seus alunos: "Não durmam, acordem seus vagabundos". Esta cena experimentei também no Mosteiro Shogoji, ocasião em que o monge Myohonji rompeu a escuridão do Sodo como um trovão: "O que estão fazendo! Acordem neste instante". De fato, a luz tênue da madrugada, às 3h30, propiciava possíveis cochilos. Mas nem por isso, dormir fosse uma atitude tolerável. Toda manifestação de sono devia ser combatido radicalmente com berros de advertência e golpes de kyosaku. Não apenas uma pancada, mas três. Imediatamente os outros, que também entregavam-se àquele capricho, imediatamente corrigiam a postura.
Assim aprendi a respeito do zazen. Ouvi no entanto outros instrutores fazendo considerações mais amenas em relação ao zazen. Diziam estes que dormir no zazen também fazia parte do treinamento. "Dormir quando tinham sono, também é zazen", explicavam. Quanto a mim não tinha que concordar ou discordar. Cabia apenas ouvir e aprender. Mas se retomarmos a maneira do transmissor do Dharma para Dogen Zenji, Nyojo Zenji, é bem menos tolerante. Em se tratando do ensinamento correto, maior compaixão de Nyojo era justamente a falta de tolerância pelo praticante relapso. Segundo os relatos de Dogen Zenji, não apenas o mestre gritava com seus alunos mas batia neles com o seu tamanco. Alguns entendiam a rispidez do mestre e, diante da advertência, choravam emocionados.
Certa vez, os alunos resolveram conversar com o mestre a fim de pedir a ele que maneirasse seus modos. Foi quando Nyojo deixou as lágrimas escorrerem e confessou: "O que mais desejo é que vocês aprendam o ensinamento". E todos os meios ele usava para alcançar seu objetivo. As lágrimas de Nyojo eram um lamento pela própria incapacidade de poder transmitir a verdade da prática. E os alunos, ao invés de preocuparem-se com a verdade, estavam interessados mais na maneira como a verdade podia ser transmitida. Queriam uma prática mais amena, menos radical, mais demorada no pântano da vaidade e apegos. Mas para a Escola Soto, sempre a transmissão foi imediata.
Penso que a relação aluno/instrutor é de cumplicidade e de alta confiança. Assim, um aluno não necessita confiar num instrutor que senta a menos de dez anos. Ou de um instrutor que não se senta. Se um instutor leva a prática do dharma às últimas conseqüências, exigirá que o aluno faça o mesmo. Assim, em algum momento o instutor serve de modelo para os seus alunos. E o que mais pede um instrutor é que o aluno consiga vencer as suas dificuldades e penetre no universo da prática plena e de Iluminação. Desta forma, recentemente o Superior Saikawa me advertiu a respeito de seus discípulos e estudantes. "O que mais quer um instrutor é que os alunos alcancem a Iluminação".
Se não existir este compromisso entre o aluno e o instrutor, o aluno se torna indolente e irresponsável, enquanto o instrutor um farsante. Nenhuma prática comporta esta situação. Se em algum momento existir um aluno que dissimula praticar, talvez exista um instrutor que finge ensinar.
Em alguns textos budistas está escrito que o aluno deve ultrapassar o instrutor em sabedoria ou conhecimento da prática. Penso que um instrutor da verdade assim agiria na transmissão pela prática. Sei também que algumas linhagens costumam idolatrar seus mestres, talvez por vaidade, talvez por falta de conhecimento, por necessidade de um mestre carismático envolto numa roupagem dogmática. Nestes, não se acredita que o aluno passe adiante um dia o seu mestre. Tal qual as tradições monoteístas, ninguém está acima do Ser Absoluto. Mas no budismo não existe tal ser, com poder legítimo capaz de legislar acima dos demais. No caso, acima citado, a necessidade deste ser se explicada pela carência afetiva de explorar melhor suas próprias capacidades para a Iluminação. Não temos que criticá-los. Mas que se saiba que a idolatria é uma ilusão, uma dependência em se criar mitos capazes de nos indicar caminhos possíveis. E nenhum mestre deve se tornar mito. E nem o Buda deve ser mito.
Ainda que tenhamos que ser enérgicos com os alunos, a cumplicidade que criamos com eles (não dependência) nos torna responsáveis também pelas suas vidas. Por isso, estabelecer relações com os seres, quem quer que seja, criamos karmas conjuntos.

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