sexta-feira, dezembro 22, 2006

Distribuindo branquinha

Surgiu a idéia de maneira inesperada, contrário a todos os paradigmas até então desenvolvidos nas atividades sociais. Neste final de ano, poderíamos exercitar o nosso entendimento de uma forma especial. Claro, alguns entenderam a mensagem mas não ousaram colocá-la em prática. Pois bem, o que queríamos era distribuir pelas ruas da Paulicéia algumas garrafas de cachaça para os desiludidos, catadores de papel, de lixo ou simplesmente ociosos da vida. Levando em consideração de que aquilo que bom para mim talvez seja diferente para o outro ou que a compaixão é a experiência de sintonizar o coração alheio, num universo fenomênico em que existe a dualidade (do eu e do outro) o que na verdade do dharma tal dualidade é criação unicamente de minha ignorância e egoísmo, procuramos vivenciar nós mesmos sendo o outro. Deixe-me colocar de um jeito mais simplês: sem discriminação, aquilo que agradava ao outro poderia ser priorizado numa ação que ultrapassasse as idéias, solidificadas em ações concretas.
A respeito deste outro, posso tecer considerações objetivas e devidamente experimentadas através da observação. Tempos passados, junto com um companheiro de prática budista resolvemos participar de um trabalho social, que reunia militantes da Igreja Católica. Era com os moradores de rua. Estes moradores buscavam alimento, lazer e banho nas casas mantidas por aquela entidade religiosa e conveniadas a prefeitura. Mas o que nos interessa aconteceu no depoimento de uma voluntária ligada a um grupo que cuidadava dos moradores da região central, nas proximidades da Praça da Sé. Disse ela: "Nosso trabalho é frustrante e muitas vezes sinto que nosso trabalho é em vão". Com voz lenta e angustiada contou o seu drama. Conforme nos relatou, ela retirou da rua um homem a fim de reintegrá-lo na sociedade, inclusive dando-lhe roupas novas, banho, alimento e corte de cabelo e barba. Entretanto, dois dias se passaram e ela novamente o viu nas ruas, usando os andrajos e alimentando-se de uma garrafa de cachaça. Ao ouvir este relato, no meu depoimento com energia a critiquei. Para mim, ela não tinha direito de planejar o futuro de ninguém, nem o de dizer aquilo que era melhor para o outro, ignorando totalmente a história de vida daquele. Cheguei a pensar: " que atitude egoísta são os dos que realizam trabalhos sociais visando apenas seu próprio prazer?" Vem a calhar o que ouvi um dia o monge amigo me aconselhar. "Com os injeitados temos apenas que aprender e não ensinar-lhes, pois a nossa interferência incomoda-os, assim devemos pedir desculpas antes de dirigir-lhe a palavra". Nesse caso, a nossa insolência de detentores da verdade nos torna profundamente egoístas.
Não apenas este caso verifiquei. Num outro, no caminho de casa, à noite quando o frio do inverno era assustadoramente aterrador. Certa mulher bem intensionada, uma temente de deus, com a capa negra do livro sagrado que levava nas mãos, tiritava de frio enquanto seus lábios pronunciavam um sermão dígno dos pastores mais fervorosos. Do outro lado, um mendigo tinha sido acordado de seus sonhos e experimentado uma situação bizarra. Seus olhos ofuscados por ter sido abruptamente acordado, lacrimejavam. Destarte, aquela mulher pronunciava a beleza da graça divina e o valor do arrependimento. Mas em nenhum momento, parece-me, o sentimento daquele homem fora levado em consideração. Naquele momento não era de sermão que ele necessitava - o mais maravilhoso que fosse - mas de ações concretas. Pensei, ele necessita de um copo de café forte e quente, de um cobertor, de um sono que não fosse incomodado.
Não que os exemplos citados servissem de justificativas pela ação concretizada nesta noite de 21 de dezembro de 2006. Apenas a realizamos, eu e o amigo Seigen.
Levávamos meia dúzia de garrafas de cachaça e dois pacotes de biscoitos. Saímos da Liberdade e fomos para a Bela Vista. Na rua Rui Barbosa, nas sombras vislumbramos dois homens e uma mulher em torno de sacos de lixos. Eram muitos os sacos de restos de comida de um restaurante próximo. Chegamos perto, sem levantar suspeitas e ofereci o saco de biscoito. Ele agradeceu. "Amigo, você gosta de branquinha", consultou Seigen. A resposta foi afirmativa. Talvez ele nem acreditasse, mas ganhou sua garrafa. Estupefato, escancarou um sorriso de dentes cariados e feliz declarou "puxa, fiz a noite!". Na mesma Rui Barbosa mais dois mendigos, que numa assembléia, talvez confabulassem suas agruras e amenidades, ganharam as suas porções. Chegamos finalmente na Praça Roosevelt, mas o único mendigo que encontramos, ao ser consultado disse que não apreciava o bebida. Deixamos para lá e continuamos a via sacra. Na Praça da República, nada de mendigos. De um lado para o outro perambulavam os hippies saudosistas vendendo suas quinquilharias. Mas quando entramos na rua Barão de Itapetininga, quase 22hs, as lojas cerravam suas portas. Chegamos a tempo do catador de papelão recolher o que restava no chão. Ao receber a sua garrafa achou ânimo para ironizar "bem, penso que é natal". Um mendigo solitário que sentava-se aos fundos da escadaria do Teatro Municipal ganhou mais uma garrafa e um outro, na esquina do Viaduto do Chá, também foi premiado. Assim terminamos a nossa distribuição de garrafas de cachaça.
Esta foi a experiência mais calorosa realizada neste ano. Tinha planejado anteriormente, que além do Seigen sensibilizamos outros companheiros. Mas achei no Seigen aquele que levou mais a sério o propósito. Como ele viajava naquela noite para o Rio, por pouco a distribuição seria frustrada. Agradeço a ele, pois quando lembrei-o do nosso plano ele próprio fez questão de realizá-lo antes da sua partida.

2 comentários:

  1. Também agradeço ao Jisho a oportunidade. Que eu me lembre, nunca havia feito algo parecido. Já havia pensando em realizar algo assim mas sempre acabava paralisado por diversos tipos de pensamento quando, a única coisa a fazer seria agir, simplesmente doar algo de coração e ponto.

    ResponderExcluir
  2. Anônimo7:25 PM

    Jishohanda,
    Ao ler o relato da distribuição da branquinha pensei: dois homens seguem o Caminho pelas ruas de São Paulo e com seus longos braços acolhem a vida. Que bela ação!Que bela iniciativa!
    Denkõ (Jane)

    ResponderExcluir