quinta-feira, agosto 16, 2007

Errantes do Samadhi (12 ago)

Crônica do dia
Cheguei na estação Alto do Ipiranga faltando dez minutos para as nove horas, até a hora combinada para partida apenas uma abelha pousou na minha mão por uns dois minutos, depois voou, mais ninguém apareceu. Conversei rapidamente com um velho preto com roupas e boina com estampas africanas. Parti, sabendo que sete ou oito horas depois chegaria naquele mesmo lugar, porém pelo outro lado da rua. O sol tímido parecia uma lua branca por trás das densas nuvens de inverno. Virei uma esquina e me deparei com um aglomerado de evangélicos na saída do culto da manhã. No próximo quarteirão uma moça em trajes sensuais abria o portão de casa com um capacete preto na mão e um sorriso malicioso, falava aos berros com alguém dentro da casa. Ruas e mais ruas desertas. Já próximo do Parque da Independência, um senhor baixo de camisa azul e pele avermelhada, me abordou pedindo uma contribuição para a passagem do ônibus, ele tinha setenta centavos, dei-lhe um e sessenta, mas depois olhei para ele: "O senhor ainda paga passagem?", ele respondeu: "Você é branquinho assim vai ver, quando tiver quarenta, dirão que tem cinqüenta, quando tiver sessenta, dirão setenta". Pode ser. Ele agradeceu muito rapidamente e sai andando mais rápido ainda, fui atrás, pois ia na mesma direção. Quando ia passando por ele, ele me perguntou se eu ia a pé, disse que sim, ele fez menção de me devolver o dinheiro, mas eu esclareci que ia a pé de propósito. Fiz o primeiro lanche num banco do parque. Enquanto comia uma banana e uma metade de pão com mel, fiquei observando uma senhora que passeava seu cão e tentava se aproximar de uma cadela vira-lata que a seguira. Mais acima uma aula de taichi, o professor, com traços ocidentais, associava sons aos seus movimentos. Vinte minutos depois eu atravessava um viaduto sobre uma linha de trem. Um viaduto para carros com apenas uma calçada estreita para pedestres. Sempre que passo em viadutos assim redobro a atenção, é um lugar sem ponto de fuga em possível caso de assalto. Passaram por mim três homens e logo depois veio um mendigo muito sujo e molambento, com um saco plástico cheio de comida misturada. A calçada mal tem espaço para uma pessoa, fiquei pensando, se aquele mendigo resolve parar na minha frente, se ele quiser me oferecer comida por exemplo, o que eu faço? Ele vinha conversando com um "fantasma", acho que foi isso que me salvou do meu medo, o fantasma dele. Quando passou por mim abriu bastante espaço e sorrindo manteve o rosto na direção contrária a mim falando e ouvindo qualquer coisa. Lembrei que, se o pássaro que canta e a noite estrelada não estão separados de mim, aquele mendigo de certa forma também era eu. Logo depois, já descendo do outro lado do viaduto, vi lá embaixo através da cerca do viaduto uma mini-favela, uma invasão do tamanho de uma pequena praça. Casas feitas de pedaços de papelão e madeira fina. Escadas tortas que levavam a um futuro segundo andar. Esgoto a céu aberto. Pessoas em diversas atividades como um banho de caneca ou um bate papo sentado no meio fio encardido. Uma placa com dizeres tão bens escritos em fundo colorido destoava daquela paisagem. Mais curiosa era a forma como eles souberam lidar com as árvores que já existiam na praça, construindo os cômodos de suas casas à sua volta, então, dentro de uma sala pode haver o tronco e o princípio dos galhos de um jacarandá mimoso. Qunize minutos depois, após subir uma longa avenida passo num Mc Donalds apenas para me servir de suas instalações sanitárias, o que agradeço na saída. Estou na Mooca, bairro típico de colonização italiana, antigo bairro operário, com moradias em pequenos blocos de apartamentos rodeados de área verde, um lugar muito agradável. Alguém tocava a nona sinfonia de Beethoven numa gaita por trás de um portão. O sol agora esquentava um pouco, fazendo desenhos desfocados nas calçadas e nos muros. Parei para comprar uma bebida, ao sair do supermercado, vi uma moça assim de uns dezessete anos vendendo alguma coisa numa cesta, pensei, ela vai me oferecer e aconteceu. Ela precisava pagar a conta de luz, por isso estava vendendo velas e miniaturas de cadeira com um carrinho de plástico. Me propus a comprar uma miniatura, não tinha troco, ela insistiu, não tinha vendido nada ainda naquele dia "Por favor!". Entrei no mercado para trocar a nota de dez que eu tinha, lá de dentro vi que ela me esperava, era bonita com um cabelo bem tratado, uma roupa simples verde musgo. Reparei que ela tinha uns cacoetes que a fazia abrir a boca em pequenos espasmos e mais tarde reparei em algumas feridas ao redor da boca. Pensei, "Quem será essa pessoa?" Finalmente conseguimos trocar o dinheiro com um cara que assistia, da calçada, a uma missa protestante num enorme salão. Disse-me ela que quem fazia os objetos que ela vendia era o pai. Um pouco mais adiante como o primeiro sanduíche de carne assada com maionese que havia levado. Estou agora num segundo viaduto, atravessando outra ferrovia. Entro no bairro de Belém exatamente ao meio-dia, os sinos de uma antiga catedral confirmam o horário em doze badaladas que me assustaram a princípio. Ao lado da catedral dezenas de homens, uns velhos, outros não, jogavam dominó. Este bairro tem casas e estrutura urbana bastante decadentes, quase tudo é cinza-enegrecido. Nas ruas identifica-se um sotaque nordestino. Pego a rua catumbi e logo depois a rua cachoeira. Vejo algumas famílias passeando. Quatro amigos sentados na entrada de uma loja fechada comem um frango assado nas mãos. Um opala preto fosco que a princípio julguei estar abandonado, tem alguém em seu interior tentando insistentemente ligar o motor. Uma obra da prefeitura com um buraco mal-cheiroso. Mais à frente, ruas "medievais", ruas bastante estreitas, algo que nunca tinha visto em São Paulo. Estou no bairro Pari. Descendo uma ladeira um poodle branco sujo e sem coleira mal se dá o trabalho de me olhar, apenas me fareja em movimentos rítmicos de nariz. Mais abaixo uma criança boliviana chuta lixo. Um pouco depois dois homens também de origem boliviana passam num papo amistoso, cada um em sua bicicleta e em cada bicicleta uma barraca de feira desmontada e presa na transversal, quase não cabendo naquelas vielas. Logo depois descubro que iam para a feira onde eu passava naquele momento. Feira de imigrantes bolivianos recém-chegados, com barracas de artesanato típico, barracas-barbearia com quadros pendurados com dezenas de fotos de diferentes cortes de cabelo e barba. Noutra barraca: "Saltenhas mágicas de Don Marcos" dizia um cartaz. Atravessei as movimentadíssimas avenidas do Estado e Tiradentes. Na saída de uma faculdade, alunos comentavam preocupados as questões de uma prova acabada de fazer. Estou agora no bairro Bom Retiro, bairro tradicional de judeus que recentemente passaram a dividir com imigrantes da Coréia, o que posso constatar facilmente pelos restaurantes desse país e pelas pessoas que passam por mim, com feições orientais diferente dos chineses e japoneses. Próximo à gráfica do jornal Folha de São Paulo tomo em dois goles um delicioso suco de laranja com mamão. Já percorri metade da caminhada que me propus, estou cansado, as pernas doem um pouco, é uma hora da tarde, ainda faltam quatro horas até o final. "Será que mudo o percurso e vou direto para casa?", "Será que pego um ônibus?". Resolvo continuar, até porquê agora quem não quer parar são as minhas pernas. Subindo a avenida Angélica, em Higienópolis, passam por mim duas Ferraris, uma preta e uma vermelha, mais acima os dois carros param num posto de gasolina, pai e filho, lembro que hoje é dia dos pais. Cruzo a avenida Consolação, na avenida Paulista saco algum dinheiro num caixa rápido, compro uma cerveja sem álcool e como meu segundo sanduíche de carne assada, este sem maionese, sentado numa praça próximo ao parque Trianon. Uma menina de uns dez anos tira fotos com o pai, lembro mais uma vez que hoje é dia dos pais. Sigo meu rumo descendo o bairro de edifícios residenciais altos, Jardim Paulistano. Passo pela entrada do parque Ibirapuera e cruzo a Vila Mariana em ruas quase desertas. Já são quatro horas da tarde. Tomo um mate gelado no shopping Sta. Cruz e sigo o último trecho da viagem, descendo uma rua enorme que me levaria após alguns minutos ao meu ponto de partida. Neste caminho, uma senhora, uma vovó de uns 80 anos de idade me aborda. Pele branca e enrugada com manchas aqui e ali e olhos verdes. Com um ar muito sofrido, diz que nunca pediu nada na rua mas que agora tinha que fazê-lo. Iria se operar de alguma coisa que não me lembro o nome, me mostrou uns calombos nos ante-braços e disse que também estava sofrendo de depressão e precisa comprar uns remédios. Apenas um dos remédios custava trinta e cinco reais! Disse que em frente à igreja onde vendia bonecas de pano, as pessoas ficavam rindo dela. Comprei uma boneca e fui acabando mais esta caminhada, chegando como eu previra pelo outro lado da rua. Cheio de alegria, às quatro e cinqüenta e nove entrei na estação de metrô Alto do Ipiranga novamente. Numa trajetória circular, tracei a roda do dharma sobre a cidade de São Paulo.

Um comentário:

  1. Sua peregrinação pelas ruas de São Paulo rendeu um relato inesperado, minucioso que possibilitou refazer a "roda" e quase visualizar as cenas vistas e vividas na trajetória.Obrigada.

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