Há algum tempo que, por opção, resolvi doar todas as minhas roupas e usar somente a roupa negra(samuê) de praticante. Não tenho mais calças jeans e nem a minha jaqueta de couro me serve mais. Andando pelas ruas da Bela Vista, do caminho que faço entre a minha residência e o templo, que fica na Liberdade, algumas vezes sou interrompido. "Onde fica a sua academia" dizem confundindo-me com algum mestre das artes marciais. Mas nem sempre é assim. Muitos desconfiam de que se trata de algum monge budista. "Que tudo esteja em paz com você" disse-me o policial, que fazia a ronda nas imediações. Havia também nos olhos dele um brilho de tranqüilidade, como que a simples presença de um praticante budista fosse suficiente para trazer a paz. Neste momento, não se tratava de minha presença pessoal, mas a de Buda representada pelo manto negro e minha cabeça raspada. Numa outra vez, descendo a Brigadeiro Luís Antonio passei ao lado de uma banca de livros usados. Conferi a prateleira e vi entre eles um livro que procurava, a República de Platão. Não tinha no bolso mais do que dez reais. O dono da banca disse que o preço era quinze reais, mas me fazia por treze. "Desculpe-me", disse, "não posso levar disponho só de dez reais". Ele me mediu de cima para baixo e confirmou: "Acho que você é um monge budista, que prega a paz universal. Está bem, leve o livro por 10 reais".
Ontem mesmo, o amigo Seigen me pediu para ir com ele a uma barbearia no Bairro da Liberdade. Ele queria tirar algumas fotos do interior, mas tinha sido recebido rispidamente no dia anterior. Fui como um provável tradutor. Evidentemente, um pedido feito em japonês tem um efeito melhor do que em português. Pareceu-me que naquele universo étnico, a conversação em japonês cria mais intimidade, maior confiança. Falei então com a barbeira, que me disse que a patroa não aprovava a idéia de alguém tirar fotos do estabelecimento. Veio uma outra, que novamente usei os mesmos argumentos. Demonstrando sinceridade, disse que procurássemos uma outra sala de barbearia. Mas de alguma forma, a confiança também ganhava terreno. O Seigen vestido totalmente de negro, pois tinha feito zazen naquela manhã, e eu com minha roupa preta e sandálias havaianas no pé. Estávamos com rakusu no pescoço. Mas nada disso tinha sido intencional. Não demorou muito, chegou a patroa. Explicamos a nossa situação. Ela perguntou-nos se não era matéria paga, para alguma revista. "Não, não se trata disso", disse. Ainda desconfiada, andou de um lado para outro e arrematou: "Você é monge de que templo?" Então disse: "Sou da rua São Joaquim". Parece que isso a acalmou. "Penso que alguém acompanhado de um monge não tem nenhuma maldade". Isso queria dizer que Seigen tinha todo o salão para fotografar, inclusive as funcionárias e os fregueses. Antes ela também percebera que o Seigen tinha a cabeça raspada, além da roupa preta. "Você, qual a sua ligação com o templo", arrematou. "Faça zazen no templo", disse ele. Todo gelo tinha sido quebrado, não pela nossa simpatia ou talento. Nossas vestimentas é que transmistiam compaixão e verdade.
Numa outra situação, estávamos em Buenos Aires e na hora do almoço fomos até a uma vila em que existia restaurantes chineses. Escolhemos a casa mais cheia e sentamo-nos. Pedimos uma variedade: legumes, arroz, sopa, frutos do mar e chá jasmim. Ficamos por uma hora naquela casa. Ao final, pedimos a conta. Veio a patroa e falando um espanhol argentino com carregado sotoque disse "vocês não nos devem nada". Ficamos sem entender. Um dos monges tinha depositado sobre a mesa uma imagem do Buda, ganho minutos antes de um monge chinês. A dona apontou para a imagem e para nós mesmos e concluiu "não temos que receber de vocês". Agradecemos e com as mãos em gashô fizemos uma oração de transmissão dos méritos à dona da casa. Sei que não era por nós que ela fazia isso, mas pela compaixão de Buda.
Por isso, o manto de Buda tem o peso infinito da compaixão. Em momento algum temos de abandoná-lo pelo seu peso, pois onde o manto tiver, o Buda estará. A experiência é mística. Quanto mais se pratica mais o uso do manto é necessário.
De longe, muito longe, sinto a força e a coragem das suas convicções.Elas inspiram confiança.
ResponderExcluirJisho San, seu comentário e estas histórias me tocaram profundamente.Obrigado.
ResponderExcluirAdicionarei seu blog aos meus favoritos e acho que, daqui para a frente, sempre darei uma passadinha aqui. Você escreve muitíssimo bem , de uma maneira muito fluida e natural, o que estimula e incentiva a leitura das crônicas de sua lavra. Obrigado e siga em frente.
ResponderExcluirEdificante e inspirador!
ResponderExcluir/\
A psicologia da roupa simplesmente isto.
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