terça-feira, junho 05, 2007

O monge de olhos de taturana

Um corredor escuro e úmido conduzia a uma entrada à esquerda do velho casarão em ruínas. Na entrada uma escadaria unia a sala de baixo com a de cima. Do lado direito desta, um tambor com marcas de bolor. Se continuássemos adiante, iríamos para a área do gaitan (área externa) para em seguida entrar na sala do zendô. Naquela sala retangular, todas as paredes tinham sido ocupadas pelo tan (plataforma) nos quais se sentava durante o zazen. Ao lado da imagem esculpida em cinzel do Bodhisattva Manjusli (Monju Bosatsu) encontrava-se sentado um monge vestido com um manto cor de barro. Mais tarde fiquei sabendo de que se tratava do abade Shingu Sôkan. Era a primeira vez que me sentava em zazen. Não encontrei dificuldades na postura de meia lótus. Em torno de vinte praticantes ocupavam cada parece vazia disponível. Até então, devido a semi penumbra não tinha reparado na presença daquele monge que, ao contrário dos demais, sentava-se olhando em direção às costas dos praticantes. Desconheço o motivo, mas aquele monge começou a falar em japonês, logo traduzido por um monge de feições ocidentais, colocado ao lado esquerdo deste. Aquele assunto era totalmente estranho e nada inteligível para mim. Teria sido esta vez também o do primeiro teisho. O que mais me impressinou não foi o teor daquela comunicação, mas a tranqüilidade transmitida por ele.
Desta primeira experiência orgânica com o Zen, ficou a certeza que retornaria ainda àquela casa. Voltei outras vezes, nos anos seguintes. Nunca mais o vi. Quem encontrei nestas outras vezes foi um monge velho, magro, de rosto sugado, olhos profundos e negros e enormes sobrancelhas que mais lembravam duas taturanas. Chamavam-no de Tiba, ou simplesmente Tiba-san. Nos recebia com um leve sorriso no canto da boca e voz marcadamente pausada em seu português mal falado. Nos recebia nas noites de sábado com um "boa noite", desejando-nos boas vindas. Perguntava se era a primeira vez. Caso fosse a primeira vez, levava-nos até o zendo e explicava a maneira de se sentar, de andar, de juntar os punhos em sasshu. Os praticantes mais antigos ficavam sentados numa sala de espera. Pouco se falava, quase nada. E quando o monge Tiba ingressava na sala de espera, o silêncio era total. Um silêncio reconfortante, de confiança, para dar início ao zazen propriamente dito. Da primeira batida no han todos em silêncio dirigiam-se ao zendo e sentavam-se. Quase imperceptível eram os passos do monge Tiba, percorrendo a sala com o kyosaku nas mãos. Vez ou outra um "pahhhh".
Terminado o zazen, em silêncio todos deixavam seus postos e retornavam à sala de espera. O monge Tiba era o último a entrar. Seus olhos perscrutavam os praticantes, que se sentiam inibidos diante da grandeza daquele homem pequeno. Como ninguém se manifestava, ele dizia: "alguma pergunta?" Ninguém arriscava pergunta alguma. Eram raras as perguntas, se estas realmente existiam. Numa ocasião alguém se colocou e fez uma com tantos conceitos e adjetivos, que a resposta foi mais sintomática: um sorriso apenas. "Mais uma pergunta", encorajou Tiba. Nada. "Não existe pergunta, zazen acabou. Boa noite", encerrou o monge.
Neste tempo dirigia-me ao templo apenas para fazer zazen. O zazen em sí era o suficiente. A postura, em si, era o suficiente. Queria sentir o silêncio por algum momento, naquela casa simples e excessivamente pobre. De todas as experiências tidas - poucas - esta era a mais radical de todas. Cuja radicalidade se encontrava em ficar parado, olhando para as paredes brancas, sem nada ganhar, sem nada perder. Aquilo era ser radical. E aquelas sobrancelhas de taturana ficaram na memória, a referência de monge mergulhado no silêncio da noite. O monge Tiba era o próprio zazen, o próprio corpo de Bodhidharma, a própria mente de Buda. Tinha que conhecer mais a respeito deste universo... Como? Abandonando-se!

3 comentários:

  1. Abandonando-se, caminhando entre as pedras...

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  2. Quanto mais caminhamos as pedras nem ao menos sentimo-as sob os pés. Talvez no começo os pés e as pedras eram coisas diferentes. Depois, não se sabia mais onde terminava o pé e começava a pedra. E neste momento retomamos a caminhada entre pedras, gramas e trilhas estreitas. Não temos que domar a natureza, mas a nós próprios abandonando-nos.

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